O fio da meada de um dos mais apaixonantes mistérios da ciência começou a ser puxado há pouco mais de sessenta anos: afinal, quais elementos biológicos fazem com que um ser humano seja tão diferente de outro, não só nos aspectos físicos como também no comportamento? Hoje, conhece-se a razão. O segredo passou a ser desvendado pelo trio de biólogos Francis Crick (1916-2004), inglês, James Watson, americano, e Maurice Wilkins (1916-2004), neozelandês, pesquisadores da Universidade de Cambridge, na Inglaterra, que decifraram o DNA, o marco zero do início da jornada, em 1953. Pouco se sabia, naquele momento, da função da estrutura em dupla-hélice que formava a molécula. Dada a largada, a década de 60 testemunhou a mais espetacular maratona intelectual da virada do século. É a procura que se mescla com a busca ancestral pela resposta de uma eterna dúvida do homem: “De onde viemos?”.
Antes da descoberta do DNA, a única base que se tinha para explicar as diferenças entre os animais (incluindo os do gênero homo) era a teoria da evolução, de autoria do mais famoso dos naturalistas, o inglês Charles Darwin (1809-1882). Em seu clássico A Origem das Espécies (1859), Darwin apresentou a ideia de que a diversidade biológica era resultante de um processo de descendência, pelo qual os organismos se adaptaram gradualmente ao ambiente em que viviam. Evidentemente, o darwinismo firmou-se como a tese mais aceita para explicar a evolução, uma proposição ainda hoje respeitada e inescapável. No entanto, havia uma lacuna. Darwin acreditava que as heranças biológicas seriam selecionadas a partir da sucessão de gerações de cada espécie. Os estudos genéticos do século XX permitiram relativizar essa ideia.
Descobriu-se que as mutações genéticas, que impulsionam a evolução dos seres vivos ao longo do tempo, operam de forma muito mais fortuita do que Darwin imaginava. Há, como se sabe, as características herdadas diretamente de nossos pais. Contudo, elas podem sofrer alterações de geração em geração, independentemente do meio ambiente. Transformações que podem ser benéficas, como uma adaptação que permita ao sistema gastrointestinal digerir melhor a lactose, ou maléficas, a exemplo das que levam a deficiências físicas e intelectuais.
É um jogo cujas regras foram desvendadas pela ciência nas últimas décadas. Os estudos progrediram do sequenciamento isolado do DNA para sua decifração por completo. O Projeto Genoma Humano, tocado pelos Estados Unidos, levou, em 2003, ao primeiro desenho preciso de nossa genética. A iniciativa pioneira custou 2,7 bilhões de dólares e demorou treze anos para ser concluída — e agora é possível fazer o mesmo em alguns dias, num hospital qualquer, por 1 000 dólares. “O avanço foi colossal e continuará nessa toada, e a genética será o campo científico mais emblemático do século XXI”, diz a geneticista Mayana Zatz, diretora do Centro de Pesquisas do Genoma Humano da USP. “Se lá atrás ainda nos debatíamos para tentar identificar os genes, hoje já podemos até manipulá-los.”
Desde 1996, quando se clonou a ovelha Dolly, a ciência demonstrou ter meios para reproduzir qualquer animal vivo — em teoria, até um ser humano, feito ainda não realizado devido às barreiras éticas. A ambiciosa meta é no futuro conseguir inclusive criar vida praticamente do zero. É o objetivo de um projeto da Universidade Harvard que, desde 2015, procura reconstruir o DNA do mamute, extinto há 5 000 anos. Soa como ficção? Pois saiba que o primeiro filhote de mamute pode sair do laboratório em breve.
Outro fim será possibilitar a edição de genes humanos. Já neste ano devem começar testes clínicos com pessoas que terão o DNA manipulado para permitir o combate a doenças. Mas há uma questão de fundo filosófico que surge nesse cenário: em que ponto deixaremos de ser considerados meros animais, fruto da natureza, e, ao adquirir o poder de criar e remodelar a vida, viraremos uma outra coisa ainda sem nome? Talvez sejamos mesmo portadores do “gene egoísta”, na clássica definição de Richard Dawkins, o biólogo britânico, de 1976, para quem todos os seres vivos são reles máquinas criadas pelos genes cujo objetivo essencial é apenas replicá-los.
Publicado em VEJA de 26 de setembro de 2018, edição nº 2601