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Embalo em ondas

Do século XVIII à atualidade, com altos e baixos, as mulheres vêm fincando seu lugar na sociedade — e seguem em marcha acelerada sob o impulso das redes

Por Rokhaya Diallo*
Atualizado em 4 jun 2024, 17h07 - Publicado em 21 set 2018, 07h00
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    ‘Lindonéia, a Gioconda dos Subúrbios’ Técnica mista, 1966, 90 cm x 90 cm (Istituto Rubens Gerchman/Divulgação)

    Tradicionalmente, o feminismo ocidental é dividido em uma sucessão de ondas. A primeira delas está simbolicamente associada ao período da Revolução Industrial, no século XVIII, época em que várias democracias (a americana, a francesa) traziam à luz suas declarações de direitos humanos. Eram manifestos em prol da igualdade de direitos. Não se atinham, porém, à distribuição tradicional de tarefas entre homens e mulheres. Faltava a perspectiva de gênero.

    A II Guerra Mundial marca um ponto de virada para a onda seguinte do feminismo. A evolução científica originou a pílula anticoncepcional. A chegada maciça das mulheres ao mercado de trabalho deu a elas um terreno vasto de reflexão sobre sua autonomia financeira. Os movimentos de emancipação na Europa e nos Estados Unidos dos anos 1960 inspiraram e ofereceram uma nova caixa de ressonância a feministas mais radicais. O tema da igualdade avançou para um questionamento do sistema patriarcal, projetado para privilegiar os homens. A luta se ampliou: elas foram atrás de liberdade para se vestir, viver relações homossexuais e, sobretudo, frear as violências sexuais. A ideia essencial de movimentos que derivaram daí — My Body, My Choice e outros — é que as mulheres deveriam dispor de seu corpo, livre das amarras postas pela dominação masculina.

    O que se considera a terceira onda feminista surgiu nos Estados Unidos e se propagou por várias décadas pelo mundo. Nos vibrantes anos 1970, um novo ângulo, mais segmentado, despontou em paralelo à agitação das ruas: militantes negras perceberam que não encontravam um lugar ideal nos movimentos feministas, em que eram alvo de racismo, nem nos movimentos negros, em que o sexismo era excessivo. Foi assim que nasceram o Black Feminism e o Chicana Feminism, também chamado de chicanismo pelas militantes de origem latina.

    Desse ponto em diante, as mulheres assumiram identidades mais complexas: somos mulheres E negras, mulheres E androfóbicas. Essa nova onda vem impulsionada pelas vitórias anteriores, mas tem um componente crítico em relação a elas: há uma certa desmobilização da militância feminista e até mesmo uma rejeição da própria noção do feminismo, que passa a ser percebido como antiquado, algo caricato. Até aqui as reivindicações haviam sido conduzidas principalmente dentro da esfera pública por mulheres da burguesia que não consideravam os argumentos de grupos menos privilegiados.

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    “Sojourner, escrava americana, disse às mulheres brancas em um congresso: ‘Ain’t I a woman?’ (Eu não sou uma mulher?)”

    O pensamento feminista está ancorado, ele mesmo, em uma desconstrução crítica, que coloca a concepção de gêneros no lugar da de sexos. Os sexos dividiam a humanidade de maneira binária — homens e mulheres — como se isso fosse uma condição natural. Já a noção de gênero se expande pela ideia de uma construção social e, paradoxalmente, revive a teoria de Simone de Beauvoir (1908-1986): “Ninguém nasce mulher: torna-se mulher”. Assim, é a sociedade que fabrica os gêneros, por meio das injunções sociais. Não se fala mais somente em dois grupos, mas em uma multidão que pode recusar a intimação do gênero feminino ou masculino e se declarar, inclusive, não binária.

    E chegamos à quarta onda, que desemboca no fim dos anos 2000. É a tecnologia acessível via internet que permite a mais mulheres ocupar espaços e fazer com que sua voz ressoe. Algumas delas, que sempre foram invisíveis na esfera pública dominante, ganham o poder da palavra agora que estão nas redes sociais. A internet permite rapidamente a divulgação massiva de ideias e testemunhos, bem como a formação de grupos feministas e a organização de manifestações. Elas ocupam com força uma plataforma que possibilita a quem nunca teve fórum nem audiência expor seu pensamento, criando hashtags como #MeToo. Isso era impossível em um mundo pré-­internet. Trata-se de um avanço. Um novo mundo. Contudo, Tarana Burke, a americana que deu origem ao MeToo, uma mulher negra, acabou sendo preterida por atrizes hollywoodianas — o que, em certo grau, perpetua uma invisibilidade das vozes dessas mulheres menos poderosas.

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    O feminismo que se impõe, essencialmente pró-escolha, expande suas fronteiras: ele foca o direito das mulheres de dispor livremente de seu corpo, como já foi dito — isso abrange o direito à contracepção, a se vestirem como desejarem, a terem o seu lugar. Mas não para por aí. A escolha deve ser a mais vasta possível. As mulheres também devem ter o direito de se expor publicamente com um lenço religioso na cabeça, de se desnudar, de reivindicar um reconhecimento profissional e de ter acesso aos direitos sociais associados ao exercício da profissão. A questão da aceitação de corpos fora dos padrões das normas dominantes, outro tópico de alta relevância no rol dos avanços, também entra em cena — brilhantemente tratada pelo movimento Body Positive.

    Esta descrição do feminismo como uma sucessão de ondas é sobretudo uma visão ocidental, ampla mas incapaz de explicar a complexidade dos movimentos feministas em todos os países em que se pronunciam. Diante da pluralidade de culturas, a expressão do feminismo varia muito de um lugar para outro. Não é possível criar uma história do movimento como uma flecha avançando de maneira contínua globalmente. Não há apenas um caminho em direção a um único feminismo que emancipará todas as mulheres da mesma forma. Sendo assim, são as mulheres que devem definir suas prioridades dentro de suas respectivas realidades. Enquanto o movimento MeToo sacudiu positivamente muitos países, outros caminham a passos mais lentos. Mudar hábitos, costumes e visões de mundo não é nada fácil. Há anos a Índia se mostra publicamente apreensiva com a questão da violência sexual, por exemplo.

    A história fornece muitas narrativas de mulheres nas quais se inspirar, mas sua saga (e isso não é raro) acaba sendo esquecida, apagada em favor de homens que reivindicaram para si seus feitos. Algumas, às vezes em nome do próprio feminismo, se deixaram oprimir por outras mulheres. Vale lembrar, por exemplo, de Sojourner Truth, escrava americana que, no século XIX, se expressou em um congresso feminista constituído de mulheres brancas de forma simples e contundente: “Ain’t I a Woman?” (“Eu não sou uma mulher?”). Ela indagava a essas mulheres que pretendiam libertar todas as outras por que sua condição de mulher negra era inferior. Como Sojourner, existem muitas que lutam por sua igualdade fora dos grilhões brancos e cristãos. Sua briga é menos vistosa, mas não menos importante. A leitura atual do movimento feminista se mantém impregnada de um prisma etnocêntrico. Para seguir caminhando, precisa extrapolar essa ótica, de modo que a inclusão seja, enfim, universal.

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    * Rokhaya Diallo, francesa, é escritora e ativista

    Leia mais: O FEMINISMO

    Publicado em VEJA de 26 de setembro de 2018, edição nº 2601

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