Saúde e segurança sempre foram temas centrais de eleições, principalmente quando a gestão de metrópoles está em jogo. Na reta final da campanha à prefeitura, contudo, a disputa em São Paulo foi monopolizada por uma questão que nunca havia sido tão iluminada: o fornecimento de energia elétrica. Faltando pouco mais de quinze dias para o segundo turno, uma chuvarada deixou 3 milhões de moradias no escuro, como se a capital fosse a Havana dos apagões.
Nem todos os paulistanos, porém, que explodiram em desconforto contra a Enel, a operadora local, e a inépcia das autoridades, que resultou em árvores caídas a cortar a fiação, viveram o apagão da mesma maneira. Nos condomínios de luxo, mesmo com a interrupção do fornecimento, a luz foi sustentada por geradores movidos a combustível fóssil — solução que em passado recente era comum apenas para manter serviços essenciais, como hospitais e farmácias.
Não há estatística do atual crescimento no uso de geradores particulares, mas alguns dados revelam a expansão do negócio. Segundo a Neotrust, companhia de estudos de varejo digital, a procura pelos barulhentos aparelhos cresceu nove vezes entre os dias 12 e 16 de outubro. A maior parte dos geradores adquiridos (72,2%) funcionava a gasolina, enquanto 23% eram alimentados por diesel. No ano passado, em todo o país, as vendas cresceram 150%.
Existe uma relação direta, por óbvio, entre o tempo que as empresas demoram para restabelecer o funcionamento do sistema elétrico e o consumo de geradores. Em São Paulo, 100 000 clientes permaneciam sem energia depois de cinco dias da tempestade. Neste ano, a capital paulista teve seis apagões, sendo dois de grande escala. As interrupções na entrega de energia explodiram também no Norte e no Nordeste. Eventos climáticos extremos, como as altas temperaturas, causaram elevação tamanha na demanda do uso de aparelhos de ar-condicionado, entre outros eletrodomésticos, que o fornecimento colapsou algumas vezes. As queimadas, tempestades e chuvas intensas também contribuíram para os episódios de queda de energia.
O problema é crônico e preocupante, visto que as capitais brasileiras estão cada vez mais adensadas. Em 2023, por exemplo, o brasileiro ficou em média nove horas e 36 minutos no escuro, de acordo com a Agência Nacional de Energia Elétrica — os dados de 2024 estão sendo compilados. É problema antigo, desdenhado com insistência. Lembre-se que, em 2000, foram dezoito horas e 46 minutos sem luz. O que fazer, se as soluções não chegam? O jeitinho brasileiro, ainda que resulte em evidente passo atrás no necessário cuidado ambiental (veja a comparação de três modelos de geradores no quadro).
Foi o caso de um conjunto de seis prédios no bairro exclusivíssimo de Vila Nova Conceição, próximo ao Parque Ibirapuera, região conhecida por ter o metro quadrado mais valorizado da cidade. “Nele, ninguém admite ficar sem ar condicionado”, diz a síndica profissional Camila Indes, responsável pelo bom funcionamento dos edifícios. A empresa na qual Indes trabalha zela por outros seis conjuntos residenciais nas redondezas, todos salvos pelos motores. Conselheiro de um edifício construído em 1970, na Vila Mariana, o médico Antônio Júlio da Costa, de 71 anos, expandiu a energia produzida pelo gerador do prédio nas áreas comuns para os apartamentos. A administração do edifício chamou um engenheiro especializado para checar se sobrava energia. De fato, havia estoque suficiente para abastecer os 24 apartamentos, com 180 metros quadrados cada um. O problema foi resolvido com uma obra de infraestrutura, que custou 2 500 reais por proprietário. Hoje, quando a luz acaba, a vida ali continua igual. “Os moradores até esquecem que estão pagando o diesel”, diz Costa. Prédios autossuficientes como esse, que ficaram três dias sem luz, gastam até 10 000 reais de combustível. Mas até mesmo o cheiro típico de escape de caminhão vira detalhe diante do conforto.
Responder à crise energética com soluções ambientais nocivas não é prerrogativa do Brasil. A Alemanha, por exemplo, que chegou a 60% de fontes energéticas renováveis, foi obrigada a reabrir as usinas de carvão para compensar o corte do fornecimento do gás natural russo, depois do início dos ataques de Putin contra a Ucrânia. Outros países da União Europeia também voltaram temporariamente ao combustível fóssil mais nocivo. O carvão foi peça-chave para a Revolução Industrial decolar na Inglaterra, no século XIX, mas em um mundo que precisa urgentemente limitar o aquecimento em 1,5 grau, seria mais útil que ficasse enterrado no passado. A realidade é suja.
Publicado em VEJA de 25 de outubro de 2024, edição nº 2916