2022 foi um ano rico para a agenda ambiental global. Pela primeira vez, duas Conferências importantes – a do Clima e a da Biodiversidade – foram realizadas em um intervalo tão curto, com menos de 20 dias entre o fim de uma e o início da outra. Essa proximidade evidenciou ainda mais as sinergias das agendas, que se integram, se complementam e se reforçam para garantir a saúde do planeta.
O novo Marco Global da Biodiversidade, que foi acordado por quase 200 países participantes da 15ª Conferência da ONU sobre Biodiversidade (COP15), em Montreal, no Canadá, é um resultado histórico, negociado ao longo de quatro anos – com atrasos em função da pandemia – e que está sendo considerado por especialistas como o equivalente em importância ao Acordo Climático de Paris, porém, com foco na biodiversidade.
O Marco Global da Biodiversidade de Kunming-Montreal, o nome do acordo, define um modelo internacional para guiar a mudança coletiva no destino da natureza nesta década crucial para meio ambiente. Este é um importante passo na agenda da biodiversidade e na maneira como nos relacionamos com a natureza. O novo Marco traz 23 metas, sendo uma das principais a 30×30, que significa conservar 30% dos habitats terrestres e aquáticos até 2030, o que é bastante ambicioso, pois será necessário dobrar a conservação de áreas terrestres, hoje em 17%, e triplicar a conservação das áreas marinhas, atualmente em 10%.
Além disso, os países se comprometeram a restaurar 30% dos ecossistemas degradados aumentando a resiliência às mudanças climáticas e apoiando as contribuições da natureza para as pessoas, aplicando as chamadas Soluções baseadas na Natureza (SbN). Se comprometeram também a reduzir o risco de pesticidas e outros produtos químicos na biodiversidade em 50%, inclusive reduzindo os subsídios nocivos em US$ 500 bilhões por ano até 2030. Medidas legais e regulatórias também deverão ser adotadas para garantir que grandes empresas e instituições financeiras divulguem seus impactos e dependências sobre a biodiversidade.
Não menos importante, está a decisão em integrar a biodiversidade em todos os setores, em particular aqueles com impactos significativos sobre a biodiversidade, como agricultura, silvicultura, pesca, infraestrutura, energia, mineração e turismo. Assim como a adoção de mecanismos claros de implementação e revisão, exigindo que os países revisem as Estratégias Nacionais de Biodiversidade e os Planos de Ação antes da COP16 (2024), que será na Turquia. Outro destaque foi a determinação de uma estratégia de mobilização de recursos que define a necessidade de se criar um novo Fundo Global de Biodiversidade; além de estabelecer uma decisão sobre a controversa questão de repartição de benefícios, a partir da criação de um mecanismo para uso comercial da informação genética derivada da biodiversidade que é conservada por povos indígenas e comunidades locais, e nações em desenvolvimento ao redor do mundo.
Essas decisões evidenciam que o trabalho que vem pela frente irá impactar diretamente o futuro do planeta, principalmente no que diz respeito à implementação do Marco. Isso porque há pontos ainda em discussão, como, por exemplo, se a meta de 30% deve ser cumprida individualmente pelos países ou se será um somatório de todas as áreas.
Na questão do financiamento, sabemos que os recursos mobilizados são de extrema importância, mas não serão suficientes para suprir a lacuna entre o montante necessário para recuperar a natureza e o efetivamente disponível. Um estudo realizado em 2020 pela The Nature Conservancy, em parceria com o Paulson Institute e o Cornell Atkinson Center for Sustainability, calculou que o financiamento necessário para a biodiversidade pode chegar a US$ 824 bilhões por ano até 2030. O acordo prevê a triplicação da assistência internacional ao desenvolvimento para a biodiversidade, para US$ 30 bilhões ao ano, e o aumento do gasto total em biodiversidade de todas as fontes em US$ 200 bilhões ao ano até 2030. Apesar dos avanços a conta não fecha e será importante buscar outras fontes financeiras para atender à demanda.
Se clima e biodiversidade caminham globalmente de mão dadas, no Brasil essa conexão é ainda mais evidente. Não apenas porque o país é um dos mais biodiversos do mundo, mas também porque a necessária redução das emissões de gases efeito estufa (GEE), para combater as mudanças climáticas, tem relação direta com o desmatamento, diferentemente de locais como Estados Unidos, Europa ou China, cujas emissões são majoritariamente provenientes do uso dos combustíveis fósseis.
Por aqui, mitigar os efeitos das mudanças climáticas e conter a perda da biodiversidade passam necessariamente pelo combate ao desmatamento. Vale lembrar que, segundo as últimas informações do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), em 2019 a taxa de perda anual da Amazônia era de 7.536 km² e atualmente está em 11 mil km². Essa perda de cobertura vegetal impacta direta e negativamente nas duas agendas.
Como num jogo de futebol, o gol necessário para o estabelecimento do Marco pós 2020 foi feito. Mas o campeonato continua. Agora, para que seja um sucesso, nós precisamos de um plano de implementação onde as metas sejam efetivamente ambiciosas, o financiamento necessário seja alcançável e que os direitos dos povos indígenas e das comunidades locais sejam reconhecidos e fortalecidos em sua plenitude.
*É geóloga, Mestre em Planejamento Energético e Ambiental, Doutora em Relações Internacionais e diretora para Políticas Públicas e Relações Governamentais da TNC Brasil