Efeito das mudanças do clima, seca no Brasil é a mais intensa da história
Estiagem afeta estados inteiros e destrói plantações. Há meios de combatê-la, mas quase nada tem sido feito
A terra rachada, as plantações esturricadas e o gado definhando pela falta de chuvas são imagens que o Brasil conhece. Elas estão pregadas no Nordeste, região perenemente castigada pelo sol inclemente e pela falta d’água, compondo um cenário de desolação frequentemente descrito, em tom de lamento, em verso e prosa. Em um dos relatos mais pungentes do drama nordestino, o escritor Graciliano Ramos (1892-1953) desfia em sua obra-prima, Vidas Secas, de 1938, a saga do vaqueiro Fabiano e sua família, que, acompanhados da cadela Baleia, vagam pelo sertão em busca da sobrevivência. Pois nestes tempos de mudanças climáticas evidentes e rompantes agressivos da natureza, o epicentro da estiagem mudou: é no Sul, no Sudeste e no Centro-Oeste, alcançando um pedaço da Bahia, que a vida está secando. No país como um todo, 40% do território pena com a falta de chuva, que se espalha por estados inteiros e impacta seriamente 2 445 municípios (veja no mapa abaixo). Pela duração e intensidade, trata-se da pior seca desde que o fenômeno começou a ser medido aqui, em 1910. “A era de extremos do clima já é realidade no Brasil”, diz José Marengo, coordenador do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden).
VEJA visitou municípios afetados pela catástrofe ambiental no noroeste de São Paulo, região que se encontra em alerta de seca excepcional, a mais severa na escala do Cemaden. Em toda parte observa-se, em primeiro lugar, grande preocupação e, logo em seguida, surpresa — ninguém esperava um desastre dessa proporção naquelas terras férteis. Arrendatário de terras em Estrela d’Oeste, João Reinoldes, 45 anos, conta que as chuvas começaram a escassear em 2019, devastando a produção de laranja. Partiu então para um plano B, a pecuária, supondo que ela resistiria melhor à intempérie, mas a seca persistiu e o capim amarelou, obrigando-o a alimentar o gado com ração, a um custo proibitivo. “O clima enlouqueceu e nós estamos sentindo na pele”, queixa-se Pedro Desenzi, 45 anos, que tenta salvar metade da sua lavoura de cana-de-açúcar — a outra metade, que arrenda para uma usina da região, virou palha. Não longe dali, Carlos Alberto Jacinto, 61 anos, mostra com tristeza as árvores sem viço no pedaço de terra onde colhia os frutos de 2 000 mangueiras e 2 500 pés de tangerina, tudo perdido na aridez da terra.
O sumiço das chuvas também criou uma situação dramática no sul de Minas Gerais, coberto de plantações de café justamente pela combinação de temperatura amena com solo úmido (o estado colhe metade da produção nacional, que por sua vez responde por 40% da oferta mundial). Cafezais são plantações delicadas e é natural que vez por outra a falta de chuva ou o frio incomum prejudiquem a safra. Nos últimos tempos, porém, a estiagem excepcional, intercalada por geadas de rara intensidade, vem devastando as fazendas de café mineiras e a safra deste ano pode ser até 40% menor do que a de 2020, expectativa que fez o preço internacional subir 30% na última semana de julho.
A reportagem de VEJA esteve em municípios do sul mineiro em que praticamente toda a colheita está perdida, tanto por causa da seca persistente quanto do inverno rigoroso. “Sinceramente, não sei o que vai ser do futuro do café e de quem vive dele”, diz Marcelo Henrique da Silva, 36 anos, de Itamogi. Na fazenda de Marcos Custódio, 41 anos, em Jacuí, não cai uma gota de chuva há quase três meses, comprometendo 80% da colheita. “A cafeicultura sustenta a minha família há meio século e nunca vimos nada assim”, afirma Custódio. Pequenos e grandes produtores temem os efeitos da imprevisibilidade do clima. “A atividade cafeeira está insustentável porque a gente não sabe como estará o tempo amanhã”, reclama Cícero Souza, 56 anos, dono de uma fazenda com 250 hectares, que teve um terço da plantação de 1 milhão de pés destruído.
Parte da estiagem pode ser atribuída ao fenômeno La Niña, que provoca resfriamento das águas do Oceano Pacífico e altera a dinâmica das chuvas, causando escassez no Centro-Sul e excesso no Norte e Nordeste. Os meteorologistas alertam, porém, sobre outros fatores preocupantes que poderiam ser combatidos — e não são. Nas regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste, os índices pluviométricos estão em queda sistemática há vinte anos, uma consequência direta do aquecimento global: a emissão de gases poluentes como o CO2, produzido pela atividade humana, esquenta a atmosfera e aumenta a frequência de fenômenos extremos, como secas intensas e temporais. A escassez de chuva, que em 2001 produziu apagões e impôs racionamentos de energia, tornou-se constante a partir de 2012. Quando ela cai, é de maneira irregular e na forma de temporais cada vez mais violentos, como os que atingiram o Amazonas em junho, quando o rio Negro subiu a níveis jamais vistos e inundou bairros inteiros de Manaus.
A seca prolongada (que não é exclusiva do Brasil) e seus efeitos constam do relatório sobre a crise ambiental que o Painel Intergovernamental Sobre Mudanças Climáticas (IPCC) da ONU, respeitadíssimo monitor do clima premiado com o Nobel da Paz de 2007, divulgará a partir da segunda-feira 9. A falta de chuvas está inserida no quadro calamitoso do aquecimento global, em que a devastação da Amazônia tem triste papel de destaque. O estudo do IPCC coloca a floresta na direção de um “ponto de ruptura”, sob ameaça de “uma transformação ecológica em larga escala”. Dá, inclusive, a receita para reverter o desastre: “Manejo do solo e da água, diversificação de culturas, agricultura inteligente, sistemas de alerta, prevenção de aumento de temperatura e pragas e melhorias no manejo de pastagens e gado” — recomendações que costumam cair no vazio. Só no primeiro semestre deste ano, 3 325 quilômetros quadrados de floresta desapareceram, o equivalente a duas cidades de São Paulo, em consequência principalmente de queimadas — as chamas que aniquilam o verde, sob o olhar omisso ou conivente das autoridades, produzem 44% das emissões anuais de CO2 do Brasil.
A destruição da mata tem outro impacto direto na regulação das chuvas. Preservado, o bioma amazônico transpira umidade em ritmo constante, propiciando a formação dos fascinantes rios voadores — canais de umidade que viajam na alta atmosfera e, ao alcançarem o Centro-Sul, formam nuvens carregadas que desabam na forma de chuva abundante. O desmatamento descontrolado tem feito minguar os rios voadores e levado o ciclo da água — da atmosfera para o solo e daí para os rios, os lençóis subterrâneos, as plantas e, de novo, a atmosfera —a pulsar de forma irregular, criando fenômenos climáticos extremos. “Em locais muito desmatados, como partes de Mato Grosso e o entorno do Parque do Xingu, a aridez vem assumindo caráter permanente”, diz Ane Alencar, diretora do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia. “É um aviso do que pode acontecer no Brasil inteiro, se nada fizermos.”
No cerrado, bioma que domina a vastidão central do país, encontra-se outra fonte hídrica vital e igualmente violentada pelo desleixo humano. “Todas as esferas de governo se omitem na gestão de nossos recursos hídricos”, lembra Angelo Lima, secretário-executivo do Observatório da Governança das Águas. As raízes da vegetação nativa se infiltram solo abaixo e carregam a água da chuva para níveis profundos, abastecendo o lençol freático. Resultado: o Planalto Central, chamado de caixa-d’água do Brasil, é o berço de oito das doze principais bacias hidrográficas do país. Deixado ao deus-dará, porém, o solo do cerrado, quanto mais ocupado indiscriminadamente, mais perde cobertura. Do município em torno da pequena Cristalina, em Goiás, foi subtraído, entre 1985 e 2019, um terço da vegetação nativa — e em Cristalina nascem 200 cursos d’água, que, ao se juntarem, formam a Bacia do Paraná, sistema que abastece 60 milhões de brasileiros.
Longe do campo, a ausência de chuva se traduz em falta d’água nos canos, com consequências implacáveis na vida cotidiana. Cinco estados já implantaram rodízio de água — só em São Paulo, 1,1 milhão de residências têm torneiras secas. Abastecida pelo Rio Paraná, que em alguns trechos baixou 8 metros, Curitiba raciona água há mais de um ano. “A situação está muito difícil. Reaproveitamos o máximo que podemos, usando, por exemplo, a água do banho para a descarga do vaso sanitário”, conta a advogada Jessica Conter, 28 anos, que enfrenta abastecimento intermitente no apartamento em que mora com o marido. O lago da hidrelétrica de Furnas, apelidado de Mar de Minas Gerais, perdeu a pose e ganhou paredes secas. De 2012 para cá, o espelho-d’água diminuiu 40% e o circuito turístico no entorno definhou. “Já tivemos 73 funcionários, mas tive de baixar para doze”, diz Miguel Barbosa, dono de um hotel em Alfenas.
A secura no Brasil se conecta a outros extremos climáticos ao redor do globo. No Hemisfério Norte, as temperaturas recordes do verão derretem até a Groenlândia, ilha localizada dentro do Círculo Polar Ártico que em um único dia, na terça-feira 27 de julho, perdeu 8,5 bilhões de toneladas de gelo. No Canadá e nos Estados Unidos, incêndios florestais de dimensões nunca vistas consomem vastas regiões, problema que se repete na Rússia, Grécia, Itália e Turquia. Tempestades apocalípticas que se abateram sobre a Alemanha e a Bélgica mataram mais de 200 pessoas e em Zhengzhou, na China, em questão de horas, um temporal despejou o equivalente a oito meses de chuva.
O Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) do Brasil prevê que os reservatórios das hidrelétricas nacionais terminem 2021 com míseros 10% de capacidade, um recorde. O risco de racionamento elétrico está descartado por ora, graças à ativação emergencial de termelétricas construídas para esse fim após a crise de 2001, no governo Fernando Henrique. A conta de energia, no entanto, deve subir, justamente no momento em que o país luta para voltar a crescer. “Os efeitos da seca começam no agronegócio e na eletricidade mais cara e se espalham por toda a economia”, explica o economista André Braz, coordenador do Índice de Preços ao Consumidor da Fundação Getulio Vargas.
Com eleição à vista, o governo, apesar dos muitos e notórios sinais de alerta para a gravidade excepcional da crise hídrica em curso, conta com o início da estação das chuvas em novembro para aliviar os problemas imediatos e foge de medidas impopulares, como campanhas para economizar água e rodízios em larga escala. Ao mesmo tempo, por duvidosos princípios ideológicos, finca pé no descaso premeditado e persistente em relação aos desastres ambientais que embutem as origens da estiagem sem fim. Uma política firme e incisiva de preservação e uso consciente dos recursos naturais pode ajudar o combalido ciclo da água a voltar a fluir em equilíbrio com a natureza. Sem ela, as vidas ficarão cada vez mais secas.
Com reportagem de Duda Gomes e Jennifer Ann Thomas
Publicado em VEJA de 11 de agosto de 2021, edição nº 2750