Nunca antes neste planeta: o calor recorde no verão do Hemisfério Norte
Incêndios, tempestades e temperaturas recorde assolam a Terra com intensidade inédita e são a prova inequívoca da gravidade do aquecimento global
Com boa parte da população já vacinada, o verão vai chegando ao fim no Hemisfério Norte com uma muito esperada, ainda que gradual, volta à normalidade na vida cotidiana. O clima, no entanto, não anda cooperando: a estação se encerra com o gosto amargo de fenômenos assustadores, temperaturas recorde e a constatação na pele — literalmente — de que entramos em uma era de extremos. No contexto global, incluídos os polos Norte e Sul, julho foi o mês mais quente de que se tem notícia, com a média batendo em 16,7 graus, quase 1 grau a mais do que os recordes do século XX. O calorão transformou boa parte do continente europeu em uma fornalha insuportável, com picos de até 48,8 graus na Sicília, no sul da Itália (veja o quadro). A combinação da canícula com uma seca sem precedentes fez arder florestas pelo continente, deixando para trás uma área de terra arrasada três vezes maior do que o esperado para a época do ano.
Do outro lado do Atlântico, a América do Norte também atravessou ondas de calor tão avassaladoras que, nos arredores de Las Vegas, puseram à mostra o leito do Lago Mead, o maior reservatório de água doce dos Estados Unidos. O mais extraordinário de todos os fenômenos, porém, se deu discretamente, sem contornos catastróficos, na maior ilha do planeta: choveu na Groenlândia. No ponto mais alto das cordilheiras permanentemente geladas — onde nunca, jamais cai chuva —, as nuvens despejaram água por cerca de uma hora, descongelando, com inédita rapidez, o chão branco do território que pertence à Dinamarca, se localiza dentro do Círculo Polar Ártico e, no último mês de julho, derreteu o suficiente para cobrir o estado da Flórida com 5 centímetros de água.
É na calota norte do planeta que os cientistas veem os indícios mais alarmantes do aquecimento acelerado da Terra. Os 4 milhões de habitantes do Ártico, uma vastidão branca inóspita que vai do Canadá à Sibéria, passando pela Groenlândia e Escandinávia, vêm enfrentando desastres em série em decorrência do calor: incêndios florestais, tempestades, inundações e a erosão do permafrost, o solo congelado o ano inteiro que recobre 25% do Hemisfério Norte. Em julho, um detalhado relatório divulgado pelo Arctic Monitoring & Assessment Programme, grupo que reúne pesquisadores do mundo todo, mostrou que, entre 1979 e 2019, a temperatura do Ártico subiu 3 graus, o triplo do resto do globo. A conclusão do relatório é categórica: o Polo Norte é o marco zero dos danos do efeito estufa. “Não há mais margem de manobra. Não podemos continuar a queimar carbono”, alerta David King, do Climate Crisis Advisory Group (CCAG), um consenso de cientistas assentado em Londres.
Nos Estados Unidos, um levantamento baseado em decretos de emergência do governo federal mostra que cerca de 30% dos americanos — 110 milhões de pessoas — foram afetados por fenômenos drásticos no verão prestes a acabar, contra os 5% de três anos atrás, e que as catástrofes mataram quase 400 pessoas no país (no vizinho Canadá foram 800 mortes, um recorde). Além dos incêndios e da seca, a temporada de furacões na América do Norte, que ainda está pela metade, é outra desastrosa amostra do clima fora da curva: antes mesmo de a sequência atingir seu auge, o Oceano Atlântico já registrou doze tempestades tropicais, das quais sete evoluíram para furacão.
O motivo, aí também, é o calor atípico — para cada 1 grau de elevação na temperatura, a atmosfera pode reter 7% a mais de umidade, levando a aumentos exponenciais nas chuvas, o que explica tanto os aguaceiros que inundaram Alemanha, Bélgica e Holanda, em julho, quanto a trajetória do furacão Ida, que entrou na Louisiana em agosto com ventos de 230 quilômetros por hora. “O Ida se intensificou em velocidade inesperada, um reflexo do efeito estufa”, diz Jonathan Overpeck, climatologista da Universidade de Michigan. Em menos de 24 horas, já havia retrocedido para tempestade tropical, mas mesmo essa fez estragos excepcionais. Chuvas intensas e tornados devastaram áreas da Região Nordeste e, em Nova York, choveu quase 200 milímetros em uma hora, o dobro do recorde de 1927. O sistema de bombeamento de água do metrô entrou em colapso e vídeos nas redes sociais exibiam pessoas presas em vagões, em túneis inundados.
Na Costa Oeste, as chamas de incêndios incontroláveis alcançaram regiões de clima ameno, onde raramente são vistas, como as margens aprazíveis do Lago Tahoe, na Califórnia, destino turístico cercado de montanhas e associado a esportes de inverno, e a província de British Columbia, no Canadá. A mata californiana está tão ressecada que o governador Gavin Newsom fechou todos os parques nacionais até o fim de setembro. A Califórnia enfrentou até agora 7 000 incêndios, que devastaram uma área equivalente a 800 000 campos de futebol, e até o fim do círculo do fogo, em novembro, deve ultrapassar o recorde histórico — 8 200 — cravado no ano passado. A realidade da interferência humana no clima fica evidente no calor “estatisticamente impossível”, na definição de climatologistas, que se registra no Noroeste americano. Em Portland, onde raramente as temperaturas passam de 25 graus, os bondes elétricos pararam porque os cabos de energia derreteram. “Não se trata de uma onda de calor, mas do episódio de calor extremo mais anômalo já observado na Terra desde que os registros começaram, há 200 anos”, diz Christopher Burt, especialista em história do clima.
O Centro de Pesquisa em Epidemiologia e Desastres da Bélgica contabiliza cerca de 3 500 desastres climáticos no mundo em um ano, cinco vezes mais do que na década de 70. A conta da multiplicação de catástrofes é salgada: o rastro de destruição produz prejuízos anuais de 1,7 trilhão de dólares e, segundo economistas, representa um risco real para a estabilidade das finanças globais. A questão será levada à Conferência do Clima da ONU em Glasgow, na Escócia, em novembro, quando os Estados Unidos e boa parte das economias avançadas devem se comprometer a adotar metas rígidas para a redução nas emissões de carbono. “A mudança climática já nos colocou em uma era altamente perigosa. Não é mais um problema que atingirá os nossos netos”, frisa Michael Wehner, da Universidade da Califórnia. O calamitoso verão que se encerra, ao expor como nunca as mudanças dramáticas no clima, ressalta a premência de ações efetivas por parte de todos nós, os causadores do calor que sufoca o planeta.
Publicado em VEJA de 22 de setembro de 2021, edição nº 2756