Onda dos carros elétricos renova fôlego de vizinhanças onde ninguém cogitava morar
Tecnologia vem reabilitando — e encarecendo — lugares onde o barulho da antiga frota espantava moradores

Famosa por suas extensas praias que enfeitam o badalado litoral leste da Austrália, a Gold Coast é cenário também de um barulhento zigue-zague de carros que tomam ruas abundantes em opções de gastronomia e entretenimento. Já era um pedaço do planeta de metro quadrado caro, mas aí novos ventos trataram de inflar ainda mais a área — e não são aqueles que fazem a festa dos surfistas. A sacudida vem da presença cada vez mais constante na paisagem dos silenciosos veículos elétricos. Com menos motores ruidosos no santuário, o preço das casas disparou 30% em apenas um ano, dando gás ao mercado imobiliário. Em outras partes do globo, a ascensão do meio de transporte mais amigável ao verde, que lenta mas continuamente substitui os automóveis a gasolina, tem renovado o fôlego de vizinhanças onde ninguém cogitava morar, de tão desagradável que era o ronco das máquinas e a própria poluição do ar.
Em zonas nobres de Barcelona, na Espanha, a relação entre os bem-sucedidos esforços para moderar o estrondo colocando os carros elétricos na pista resultou em uma conta que se reproduz mundo afora: para cada decibel a menos, as cifras do metro quadrado sobem o equivalente a 1 000 reais. Políticas públicas focadas na transição da frota, impulsionadas por isenções fiscais e medidas para facilitar a vida do motorista, como faixas exclusivas para elétricos, já vêm alterando a lógica do setor imobiliário em capitais como Oslo, na Noruega, um cartão-postal de radicais iniciativas em prol do meio ambiente. No ano passado, esses veículos superaram pela primeira vez ali os movidos a gasolina — e a venda de casas e apartamentos logo se aqueceu. O preço médio dos imóveis aumentou 9,8%, chegando a mais em certos bairros, segundo a Associação Imobiliária Norueguesa.
Quem vai na contramão experimenta o dissabor da desvalorização: em Seul, na Coreia do Sul, um estudo mostra que, para cada 1% de aumento na barulheira do trânsito, o valor do imóvel cai 1,3%. Perde-se também aí uma oportunidade de tornar a vida mais aprazível sob o ângulo do urbanismo. “A eletrificação pode impulsionar a criação de projetos de habitação mais integrados, com ocupação de áreas vazias e menos necessidade de expansão para as periferias”, explica Pedro Bastos, pesquisador em planejamento urbano e eletromobilidade da UFRJ.

A onda positiva tende a crescer, visto que a venda de carros elétricos deve ultrapassar neste ano 20 milhões de unidades pelo globo. Embora ainda esbarre no preço e na carência de infraestrutura, o movimento é caminho sem volta. Isso mesmo com o fator Donald Trump, que no regresso à Casa Branca deu marcha a ré em iniciativas do antecessor Joe Biden que miravam o salto do segmento: ele já anunciou uma tesoura nos estímulos em vigor a compradores e fabricantes e impôs tarifas sobre importações, “tudo para salvar nosso setor automobilístico”. Pode até dar uma refreada momentânea no ritmo de avanço dos elétricos, mas não abala sua rota ascendente, puxada, por exemplo, por decisões como a de implantar “distritos de baixa emissão” — aquelas zonas onde veículos poluentes são obrigados a pagar uma taxa para poder circular e, assim, vão rareando. Em Londres, os imóveis localizados nessas vizinhanças encareceram a um ritmo seis vezes superior ao dos demais pontos da cidade.
No Brasil, o número de elétricos ainda é minguado, mas sobe em boa velocidade — só em 2023, a alta foi de 85%. Segundo projeção da McKinsey, haverá cerca de 11 milhões deles pelas ruas do país nos próximos quinze anos, o equivalente a 20% dos automóveis na ativa. Em capitais brasileiras, já se avistam, aqui e ali, medidas para facilitar o dia a dia da frota verde. Tal qual Londres, o Rio de Janeiro criou o próprio distrito de baixa emissão de carbono, no Centro, onde a ideia é limitar até 2030 a circulação de veículos poluentes. A coleta do lixo será inclusive feita pelos silenciosos motorizados. Atentos ao movimento, os urbanistas estão seguros de que endereços que costumam espantar moradores se revestirão de novos atrativos. “Sem o ruído constante dos motores a combustão e com o ar mais limpo, essas regiões têm o potencial de passar por um processo de revitalização urbana e habitacional”, diz Pedro Bastos, da UFRJ.
Centros urbanos diversos vêm dando amplitude aos benefícios da frota verde ao optar por redes de ônibus totalmente elétricas — caso de Shenzhen, a inovadora cidade chinesa de 18 milhões de habitantes que, pioneira, se converteu em laboratório para a mobilidade sustentável. A crosta de poeira escura que antes ficava suspensa no ar foi se dissolvendo, e a sinfonia dos possantes cedeu lugar a certa quietude — artigo ainda raro em meio à efervescência moderna, que muito colabora para o bem-estar. De acordo com a Organização Mundial da Saúde, quatro de cada dez europeus estão expostos a níveis de ruído acima do limite recomendado, a mesma situação de brasileiros vivendo em metrópoles como Rio e São Paulo. “A exposição prolongada ao barulho ativa o sistema nervoso, gerando um estado constante de alerta que desgasta o organismo e contribui para quadros de ansiedade e depressão”, explica o neurologista Rubem Regoto. Felizmente, alguns pontos do globo já são a prova de quão mais silenciosas — e valiosas — as cidades podem ser.
Publicado em VEJA de 14 de março de 2025, edição nº 2935