As imagens são tristes. Os sacos e as garrafas de plástico vagam em silêncio no fundo dos mares como marca da mão suja do ser humano. Os detritos sintéticos representam 80% da poluição marinha e parecem eternos, porque a degradação dos materiais leva de 500 a 1 000 anos (veja no quadro). É preocupação ambientalista global. O Brasil, de extenso litoral, com mais de 8 000 quilômetros, é personagem central do drama.
Celebre-se, portanto, a iniciativa do pioneiro e minucioso levantamento do lixo de águas profundas brasileiras, elaborado pelo Instituto de Oceanografia da Universidade de São Paulo (USP). Há resíduos indevidos a 1 500 metros de profundidade e em alto-mar nas costas Sul e Sudeste do país. Em 2020, aliás, a Universidade Federal do Ceará já constatara um problema que resulta da imundície: mais da metade dos peixes da Praia de Iracema, em Fortaleza, ingeriram porcaria artificial — e morreram.
Os sinais de estragos brotam como drama. Em 2019, a equipe integrada pela geóloga Fernanda Avelar Santos detectou na Ilha da Trindade, a pouco mais de 1 000 quilômetros de Vitória, no Espírito Santo, pedras de padrão diferente dos tons acinzentados e avermelhados da areia típica do lugar. As rochas tinham um espantoso brilho esverdeado. As análises de laboratório apontaram nelas sedimentos da praia, carapaças de animais mortos e — sim! — plástico derretido, normalmente usado em embalagens e linhas de pesca.
A identificação do lixo em um ponto distante do continente sugere um nó — o plástico já se integra ao ciclo natural de formação das rochas — e impõe uma indagação: vivemos, enfim, a era geológica chamada de Antropoceno, como a alcunhou parcela da comunidade científica? No Antropoceno, lembre-se, haveria alteração irreversível dos processos biofísicos da Terra em escala planetária. Um recente painel global rechaçou o uso da expressão, por considerá-la apressada. Será? “O achado de Trindade mostra o ser humano como agente geológico”, diz Fernanda Santos. “É necessário que a população saiba que o lixo está disseminado no oceano a ponto de se solidificar.”
Há planos para frear a invasão plástica — embora a toada de consumo global não autorize esperança. Um projeto implementado em 2021 pela Organização Marítima Internacional (OMI), em conjunto com a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), ajuda as nações em desenvolvimento a aplicar boas práticas para prevenção e controle dos rejeitos da civilização. Trata-se, agora, de aliar o esforço das instituições governamentais com a boa vontade e o dinheiro da iniciativa privada, além do zelo de cada um de nós. Nesse caminho, o da educação ambiental, trabalhos como o desenvolvido em Trindade, mesmo pontuais, são relevantes. A descoberta daquele tom esmeralda deslocado, mancha do descaso, é exemplo de como a humanidade vem passando do ponto de respeito. É urgente uma freada, e não há nela visão romântica alguma, um recuo ao tempo pré-industrial. Basta o cuidado. O oceanógrafo francês Jacques Cousteau (1910-1997), pioneiro nas profundezas do mar azul, sabia das coisas: “Durante a maior parte da história, o homem teve de lutar contra a natureza para sobreviver; neste século, ele está começando a perceber que, para sobreviver, deve protegê-la”.
Publicado em VEJA de 19 de abril de 2024, edição nº 2889