As mais antigas evidências da existência da mistura de água com cereais fermentados a partir de levedura são de nove milênios antes de Cristo — uma bebida à época já muito apreciada e que, assim, foi passando de uma civilização a outra. A história relata que esta que seria a base da cerveja tal qual conhecemos era tão popular que os sumérios, em 3000 a.C., ingeriam até um litro do líquido, enquanto louvavam a deusa Ninkasi, nascida daquela “água brilhante”. Milhões de goles depois, os monastérios medievais da Europa não só padronizaram a receita, que saltou do boca a boca para o registro em papel, como adicionaram a ela um ingrediente que mudaria tudo — o lúpulo, planta do tipo trepadeira que confere o tão valorizado amargor. Pois agora justo esse item tão indispensável a esta hoje bilionária indústria anda penando com os efeitos do implacável aquecimento global, prejudicado pelas secas e elevadas temperaturas em meio à acelerada mudança climática. E o resultado no copo pode vir, num futuro não tão distante, a decepcionar a turma cervejeira.
Depois de se fazer sentir na produção de vinho, azeite e até trufas, rareando a oferta, os termômetros inclementes já começaram a incidir sobre as plantações de lúpulo, a maioria na Europa, e elas devem apresentar um declínio nos próximos anos. Um grupo de pesquisadores da Academia Tcheca de Ciências (país no topo da produção) e da Universidade de Cambridge, na Inglaterra, formaram uma força-tarefa para investigar a extensão do fenômeno. Conclusão: a seguir o ritmo atual, até 2050 haverá quase 20% menos lúpulo à disposição no planeta, o que afetará torneiras mundo afora. “O lúpulo europeu abastece todo o mercado de cerveja”, falou a VEJA o tcheco Martin Možný, um dos autores do estudo. O levantamento, recém-publicado na revista científica Nature, enfatiza que o resultado final pode levar a uma perceptível alteração no sabor — e no preço.
As adversas condições climáticas já estão reduzindo os níveis de ácido alfa do lúpulo, que é o que lhe dá o amargor. Projeções indicam que essa diminuição tende a oscilar entre 20% e 30%, o que forçará as empresas a utilizarem mais quantidade da planta para alcançar o mesmo efeito. Na prática, portanto, ou as cifras subirão, de modo a preservar o padrão, ou ficarão semelhantes, mas com o gosto comprometido, sem aquilo que o faz peculiar. “O impacto do aquecimento global está se tornando aparente e será muito difícil manter o preço globalmente”, explicou em nota a BarthHaas, uma distribuidora alemã de lúpulo, que já averiguou um encolhimento na produção de ácido alfa em algumas safras recentes.
Diante do cenário que se delineia, a ciência entrou em cena para tentar reverter projeções que preocupam produtores e consumidores. Uma das empresas globais que vem investindo pesadamente em pesquisa, a gigante dinamarquesa Carlsberg, aposta na trilha da genética: no ano passado, especialistas sequenciaram todo o genoma do lúpulo para compreender no detalhe como poderia se amoldar para driblar os novos desafios climáticos. Atualmente, as fábricas dependem de fornecedores do lúpulo, já que há décadas a companhia desistiu de ter plantação própria. “Acredito que a ciência e a inovação irão revolucionar o setor, ensinando a lidar com os extremos do clima”, afirmou Birgitte Skadhauge, diretora da divisão de pesquisas da Carlsberg. “Tudo indica que os genes podem nos ajudar a criar plantas mais robustas para a feitura da cerveja”, diz. Na Alemanha, que se notabiliza pelas ótimas cervejas, a Associação de Cervejarias da Baviera toca um projeto com o sugestivo nome de Hércules, cujo objetivo é criar uma variedade de lúpulo mais forte e resistente a pragas e aos humores do clima.
Outra frente de investigação vai numa direção que causaria arrepios aos monges que tratavam cerveja como arte: a ideia é fazer experimentos com leveduras geneticamente modificadas das quais se poderiam extrair compostos com sabor de lúpulo — sem nada da planta original. O grupo Heineken é um dos grandes do mercado envolvido em testes dessa natureza em empresas menores sob seu guarda-chuva, como a Lagunitas Brewing, na Califórnia. Terceira bebida mais consumida do planeta — com 192 milhões de quilolitros ingeridos todo ano nos cinco continentes, o equivalente a 75 000 piscinas olímpicas cheias —, a cerveja só fica atrás da água e do chá. E os brasileiros são entusiasmados adeptos, perdendo apenas para chineses e americanos (veja no quadro), que também aparecem no rol dos campeões em produção de lúpulo. “Nossa pesquisa é enfática sobre os riscos de o aquecimento provocar alterações nesta bebida tão popular”, diz Miroslav Trnka, autor do estudo divulgado pela Nature. “É preciso se mexer para preservá-la.” Isso sem deixar, é claro, de tomar urgentes medidas para zelar pelo próprio planeta.
Publicado em VEJA de 26 de janeiro de 2024, edição nº 2877