“Sapo não pula por boniteza, mas porém por percisão”, eternizou Guimarães Rosa. Esse provérbio “capiau”, que vem das páginas de Sagarana, é simples e diz tudo: nada faremos se não for necessário. Com a volta das restrições mais severas impostas pela pandemia, a necessidade nos fez voltar à cozinha. A verdade é que, desde março de 2020, muitos nem chegaram a tirar o avental. Chamo essa turma de sobreviventes da “pãodemia”, quando o medo de ir até a esquina fez todo mundo querer fazer seu próprio pão. Digo sobreviventes pois a maioria daqueles quarenteners originais já não suporta ver um pacote de farinha italiana DOC ou um levain borbulhando.
Afinal, o que tantos foram buscar no forno e fogão, além das queimaduras e frustrações inerentes ao aprendizado culinário, quando cada receita torna-se uma prova de fogo pessoal? Ora, fomos buscar nas panelas o que nenhum delivery consegue entregar. E, assim, nos dedicamos a fazer comfort food: pães, bolos, assados, doçaria conventual; quanto mais calórico, melhor. No preparo da comida, fomos buscar a emoção. Tudo para chegar aos pratos que, através de temperos e aromas, nos tragam as mais gostosas lembranças. Sejam da infância ou das viagens que tanto nos fazem falta. Ou, apenas, estamos buscando fazer o que não conseguimos comer com a frequência que a vida “normal” proporcionava.
Foi assim que comecei, eu mesma, a cozinhar. Um dia, reparei que não encontrava em casa uma comida que fosse mais leve, com menos gordura. O que cotidianamente me satisfazia já perdera o interesse. Meu desejo estava em tudo menos naquilo, o que me frustrava.
“De Guimarães Rosa, em Sagarana: ‘Sapo não pula por boniteza, mas por percisão’”
Então, lá fui eu fazer minha própria comida, queimar meus próprios dedos, criar minhas receitas light, meus programas de televisão, meus livros, meu site. Uma insatisfação que me levou a inúmeros sabores e imensas alegrias. Como disse Jean Anthelme Brillat-Savarin (1755-1826), “a descoberta de um novo prato faz mais pela felicidade da humanidade que a descoberta de uma estrela”. O autor do primeiro grande clássico culinário, A Fisiologia do Gosto, sabia das coisas (leia mais sobre Brillat-Savarin na pág. 78).
Essa busca de ser feliz comendo bem motiva mesmo. Tanto que leva muita gente a cometer loucuras, como vi no fim de março no noticiário internacional. Foragido há sete anos, um mafioso chamado Marc Feren Claude Biart, escondido no Caribe, se cansou de comer peixe. Longe de sua Itália natal, sentia falta de uma autêntica macarronada. Laborioso, esse membro da ‘Ndrangheta, poderosa organização mafiosa da Calábria, pôs-se a trabalhar.
Primeiro, pesquisou os melhores tomates em Boca Chica, na República Dominicana. Progressivamente, fez sua própria massa. Logo passou a cozinhar melhor. Confiante, achou que podia se arriscar a ter seu próprio canal de culinária no YouTube. Quem sabe, se espalhasse seu método, pudesse levar a mais pessoas os segredos da boa cozinha?
Com o ângulo certo de câmeras, manteve a identidade em segredo. Tudo ia bem, mas descuidou das tatuagens nas mãos. Foi quando a polícia deu like.
Certamente, mais um episódio na biografia do inusitado chef. Que, tenho certeza, fará de tudo para seguir cozinhando na cadeia. Não por boniteza mas, dessa vez, por rendida “percisão”.
Publicado em VEJA de 28 de abril de 2021, edição nº 2735