Tão ciosos do combate à corrupção em sua forma de roubalheira do dinheiro público a que alude em tese Jair Bolsonaro, os admiradores do presidente não só não dão sinais de desconforto como até aplaudem a escalada, patrocinada por ele, de deterioração de valores como respeito ao próximo, à administração do país, aos símbolos e aos rituais da República, à civilidade e à boa governança. Na definição da palavra no sentido de deterioração, isso significa corrupção.
Nesse aspecto, o presidente pode ser enquadrado na condição de corruptor dos hábitos e dos costumes democráticos. Se, de um lado, tal conceito não alcança as mentes programadas para aplaudir manifestações estapafúrdias por interpretá-las como traços de identificação e maneira de dar vazão a ressentimentos de variadas naturezas, de outro já se consolida como convicção na compreensão dos espíritos dotados de algum senso crítico. Nem todos eles de oposição, vários deles eleitores de Bolsonaro, muitos integrantes do grupo que preferiu não votar em 2018 e outros que ao longo do primeiro ano de governo foram se distanciando por força das atitudes do presidente, além daqueles propositadamente distanciados em decorrência da personalidade paranoide dele.
Muito se tem louvado por aí o “método da loucura”, que seria eficaz na consolidação de um eleitorado fiel, capaz de lhe assegurar vaga no segundo turno em 2022 e, nessa visão, quase uma vitória certa devido à força da Presidência e da ausência de contraponto eleitoral suficientemente competitivo.
Aposta nos bolsões mais radicais cria embrião de frente de oposição a Bolsonaro em 2022
É uma boa interpretação do cenário, mas até a página 3. A partir daí, numa leitura mais acurada, já é possível perceber o vicejar de sementes do que poderá vir a ser uma frente de oposição. Com candidatura única ou não. Embora ainda não muito perceptível, o fato é que políticos de posições ideológicas diferentes, em alguns casos opostas, estão começando a construir diálogos e aproximações de variadas maneiras, multilaterais e/ou bilaterais, dependendo do interesse específico.
Os governadores João Doria (SP) e Wilson Witzel (RJ) investem numa relação desse último tipo. Ao mesmo tempo frequentam uma daquele outro modelo no qual investem outros chefes de Executivos estaduais: Camilo Santana (CE), Flávio Dino (MA), Rui Costa (BA) e Renato Casagrande (ES), para citar só alguns dos mais atuantes do grupo de vinte governadores que neste ano, em duas ocasiões, divulgaram comunicados conjuntos com contundentes críticas ao presidente da República.
A esse movimento de contraposição se aliam constantemente personalidades de peso dos poderes Executivo e Judiciário. Nada surgiu de uma disposição oposicionista organizada, antes está se formando em reação a atos e declarações de Bolsonaro. Ele já se notabiliza, assim, por ser um exímio ativista do ofício de tiros no próprio pé, conforme atesta uma inédita enxurrada de manifestações em defesa do até outro dia malvisto Congresso como reação à convocação feita pelo presidente.
Nessa função politicamente algo suicida, Jair Bolsonaro mira na fidelidade dos bolsões mais radicais, mas acaba acertando na formação de um ambiente eleitoral em que venha a ser o alvo preferencial das demais forças e onde haja uma inédita união de esforços contra sua reeleição.
Publicado em VEJA de 18 de março de 2020, edição nº 2678