Animais Fantásticos e Onde Habitam
Outra década, outra ambientação, outros personagens – e quase a mesma mágica

Eu poderia dizer, de Animais Fantásticos e Onde Habitam, que a produção é lindíssima: em vez dos edifícios góticos e florestas e pântanos sombrios de Harry Potter, uma Nova York presa em um mal-estar cinza e marrom, já inigualavelmente cosmopolita mas ressabiada com sua própria novidade e exotismo. Lembra muito a Nova York do Era Uma Vez na América de Sergio Leone (a ambientação é a mesma, a década de 20): teatral e grandiosa, mas repleta de desvãos suspeitos. Eu poderia dizer, também, que a competentíssima Coleen Atwood se superou na criação dos figurinos, dos sapatos com aqueles vincos que eles adquirem quando muito usados (nos anos 20, sapato era artigo de luxo, e poucas pessoas possuiriam mais do que um ou dois pares) às camisas que teriam sido feitas à mão por uma costureira, não compradas em loja, e as lãs grossas dos casacos, que fizeram a minha nuca pinicar. Eu poderia dizer que Eddie Redmayne carrega em excesso nos tiques – sempre desviando do olhar dos outros, sempre inclinando o pescoço – e me cansou um pouco. Em compensação, Colin Farrell está maravilhoso, e Ezra Miller (o novo The Flash) continua a justificar a fé que se põe nele. Quem mais brilha, porém, são dois atores que eu conhecia muito pouco: Dan Fogler e Alice Sudol.
Eu poderia dizer que, como roteirista – ela está estreando na função –, J.K. Rowling tem como poucos o dom de tirar a temperatura do momento e diagnosticar a causa da febre: o roteiro foi concluído antes do plebiscito da saída da Inglaterra da União Europeia e da candidatura de Donald Trump, mas poderia ter sido escrito na semana passada, para comentar esse ressentimento e esse impulso de se fechar em si mesmos que Europa e Estados Unidos vêm vivendo. Por outro lado, Rowling continua a ser mais escritora do que roteirista, e atrapalha mais do que ajuda quando para tudo a fim de criar “capítulos” dentro do filme – para apresentar personagens que pouco têm a fazer aqui e só serão importantes nos quatro próximos filmes planejados para a série, ou então para criar “set pieces” (aquelas sequências de ação que se encerram em si mesmas) muito engenhosas mas pouco narrativas.
Eu poderia dizer, ainda, que os animais fantásticos que moram dentro da maleta mágica de Newt Scamander (Redmayne) me decepcionaram um tanto. Alguns, como o incontrolável Pelúcio e o delicado Tronquilho, são bem realizados, interessantes e úteis para a trama. Na maioria, porém, eles são um monte de computação gráfica (de boa mas não excepcional qualidade) contrastando sem muito proveito com a pedra e o concreto dessa Nova York cinzenta. A cena em que o erumpente – um rinoceronte com cabeça cheia de lava e fortes desejos amorosos – escapa, por exemplo? Uma chatice.
Já o obscurus eu adorei: uma nuvem negra de rancor produzida por crianças forçadas a sublimar seus dons mágicos, o obscurus está no centro do enredo. Há alguma criança, em Nova York, reprimindo uma magia naturalmente poderosa e criando assim um perigoso ponto de conflito entre a comunidade bruxa americana, que anda empenhada em passar despercebida, e as facções de fanáticos que desejam identificar, acusar e eliminar os feiticeiros. De um lado, Percival Graves (Colin Farrell), diretor do Departamento de Segurança Mágica, quer a qualquer custo achar essa criança. De outro, Mary Lou Barebone (Samantha Morton) e os órfãos miseráveis que ele adota e maltrata, como o pobre Credence (Ezra Miller), vêm ficando cada vez mais audaciosos no seu movimento de caça às bruxas.
No meio disso tudo estão Scamander e seus bichos fujões, que ganham a supervisão de uma subordinada caxias de Percival, Porpentina Goldstein (Katherine Waterston). E estão também, que delícia, o padeiro Jacob Kowalski (Dan Fogler), um trouxa (ou não-maj, como dizem os americanos) apanhado de roldão na bagunça causada por Scamander, e Queenie (Alison Sudol), a irmã borbulhante da muita séria Porpentina, que nunca conheceu um não-maj na vida e se encanta com o alegre, afetuoso e curioso Jacob. Eis um dos grandes achados do filme: como todo mundo se afeiçoa a Jacob, ninguém consegue juntar coragem para apagar da memória dele os feitos mágicos que ele viu, como manda a lei. De modo que esse confronto que se está armando entre bruxos e homens é visto pelos olhos de um não-maj sem afiliação e sem preconceitos. Ou, se você quiser que eu troque em miúdos, pelos olhos de uma pessoa igual ao espectador, que sempre vai se maravilhar ao entrar numa repartição pública bruxa e descobrir que as máquinas de escrever datilografam sozinhas e os relatórios e memorandos sabem em qual escaninho se arquivar; ou descobrir que duas jovens bruxas morando sozinhas podem mandar ao jantar que se faça e à roupa que se passe.
Eu poderia dizer, ainda, que tiro meu chapéu para a criatividade de J.K. Rowling e de David Yates, que dirigiu quatro dos cinco últimos Harry Potter e tem enorme respeito e afinidade pela autora e seu mundo. Todo aluno da Escola Hogwarts de Bruxaria aprende já no seu primeiro ano quem é Newt Scamander: um ex-aluno (ele cursou Hogwarts entre 1908 e 1915) que se especializou em magizoologia e, em 1927, publicou um livro-texto essencial à matéria. Harry Potter estudou com o livro de Newt em A Pedra Filosofal, e Newt depois apareceu em uma ou outra passagem dos seis livros seguintes da série. Mas ele foi sempre um personagem periférico, e o livro-texto dele é um volume magrinho e sem enredo. Tirar daí um filme já seria uma façanha; tirar daí um ótimo filme, cheio de promessas para os quatro próximos episódios, é notável.
E aí, enfim, está aquilo que realmente é preciso dizer: que esta nova porta que J.K. Rowling abriu para o seu universo não é só linda e enfeitiçante. É também original, palpitante e viva. Em vez de reenquadrar Harry Potter em um outro contexto, ou retomar suas aventuras, a autora – que nunca foi mesmo de ter preguiça – encontrou toda uma nova história, que desta Nova York de 1926 deve prosseguir pelo mundo cada vez mais ansioso e sinistro dos anos seguintes até a explosão de malevolência da II Guerra Mundial. Não é Harry Potter? Claro que não. Se fosse, garanto que só traria decepção. Muito melhor é causar excitação.
Trailer
ANIMAIS FANTÁSTICOS E ONDE HABITAM (Fantastic Beasts and Where to Find Them) Inglaterra/Estados Unidos, 2016 Direção: David Yates Com Eddie Redmayne, Dan Fogler, Colin Farrell, Katherine Waterston, Alison Sudol, Ezra Miller, Samantha Morton, Faith Wood-Blagrove, Jon Voight, Carmen Ejogo, Josh Cowdery, Ron Perlman, Zoë Kravitz, Johnny Depp Distribuição: Warner |