“Chernobyl”: imagine o pior, e então multiplique-o à última potência
A excelente minissérie da HBO mostra como o que já era uma catástrofe – a explosão de um reator nuclear, em 1986 – virou um flagelo
Pode-se assistir a quantos documentários for sobre Chernobyl (são muitos), mas nada diminui o choque e o abalo de ver o primeiro episódio da minissérie de mesmo nome, que a HBO começou a exibir nesta sexta-feira 10 de maio: em 26 de abril de 1986, a explosão do reator 4 da usina nuclear ucraniana, abastecido com 195 toneladas de urânio, pôs em marcha um pesadelo tão aterrador, tão intenso e também tão prolongado, que é quase impossível compreendê-lo em toda a sua gravidade e sua extensão. É exatamente a isso, porém, que se propõe essa excelente produção inglesa estrelada pelo soberbo Jared Harris, mais Stellan Skarsgard, Emily Watson e muitos outros atores de primeira: sacudir o espectador com a enormidade do que ele está vendo – a escala do desastre, a negligência abissal das autoridades soviéticas, o medo terrível dos engenheiros e cientistas que conduziam o teste de segurança que culminou na explosão e no meltdown. Muito mais medo dos oficiais do Partido Comunista, aliás, do que da própria radiação: no roteiro habilidosíssimo do criador Craig Mazin, a tensão de ver bombeiros como Vasily Ignatenko (Adam Nagaitis) combatendo o fogo infernal do edifício 4 sem nenhuma proteção (e em total ignorância), sob uma precipitação radioativa noventa vezes maior que a da bomba de Hiroshima, é equivalente ao nervosismo de testemunhar a obsessão do encarregado da usina, Anatoly Dyatlov (Paul Ritter), negar que algo além de “uma pequena falha” estava ocorrendo. Dyatlov obriga um de seus cientistas a ir até a boca do reator com a missão de constatar que este estava íntegro; quando o homem retorna, já quase sem conseguir respirar, com o rosto e as mãos em carne viva, vê-se Dyatlov e seu superior político brigando com ele, como se pudessem derrubar as evidências na base da coação.
Lyudmilla Ignatenko (Jessie Buckley), a mulher do bombeiro, é uma personagem famosa. É dela um dos relatos mais avassaladores contido no livro Vozes de Chernobyl, da escritora bielo-russa Svetlana Alexievich, e ela inspirou também a figura vivida por Olga Kurylenko em um filme muito bom, La Terre Outragée, de 2011. Mas o personagem crucial dessa história é o interpretado por Jared Harris – o químico inorgânico Valery Legasov, que foi escolhido para chefiar a investigação sobre o acidente – decorrente, que ironia, de um teste de segurança em que várias falhas humanas se somaram às deficiências tecnológicas da usina. O primeiro episódio começa com o suicídio de Legasov, exatos dois anos depois: o cientista fez muito (bem mais do que as autoridades soviéticas gostariam que ele tivesse feito), mas não conseguiu se perdoar por aquilo que não pôde fazer. Por exemplo, impedir a gigantesca operação de engano à população da Ucrânia e da vizinha Bielo-Rússia, a mais fortemente atingida pela radiação.
Para se ter uma ideia: havia quatro dias que mais de 1 000 toneladas de magma branco queimavam literalmente a céu aberto, a uma temperatura de 3 000 graus centígrados, espalhando uma nuvem de radiação que já fora detectada até na Suécia (qual seria sua origem?, perguntavam-se os suecos, tendo asseverado que nenhuma de suas usinas nucleares sofrera falhas). Os bombeiros chamados a conter o incêndio estavam já mortos ou fatalmente envenenados. Depois de seguir para o norte, o inimigo invisível agora se dirigia para o sul, acompanhando uma mudança nos ventos. Kiev, a apenas 100 quilômetros de Chernobyl, estava coberta. As autoridades, porém, decidiram manter as paradas do 1º de Maio. A maior parte da população saiu às ruas no feriado sagrado do comunismo, sem imaginar que estava sendo banhada em partículas radioativas. Só três dias depois os moradores da cidade foram comunicados pela primeira vez de que algo estava errado. Mas a gravidade da situação foi ocultada; lavar a cabeça e fechar as janelas foram as medidas recomendadas. A Mikhail Gorbachev, secretário-geral do Partido Comunista e líder da União Soviética, os cientistas garantiram que o reator estava intacto: poderia ser colocado no meio da Praça Vermelha, em Moscou, porque oferecia tanto perigo “quanto um samovar”.
Nessa altura, um mapa da Ucrânia e da Bielo-Rússia já mostraria as duas repúblicas soviéticas pintadas de vermelho e laranja. O fallout recebido em certas áreas era já fatal. Pripyat, a cidade de 50 000 habitantes vizinha da usina nuclear de Chernobyl, só começara a ser evacuada no terceiro dia após a explosão do reator 4. Também seus habitantes foram enganados; retornariam em três dias, disseram os soldados, para garantir a paz. Até hoje Pripyat, no centro da zona de exclusão, é uma cidade-fantasma, e o será para sempre. Os próprios militares só começaram a imaginar o que lhes esperava quando as leituras de radiação em Pripyat subiram de 15 000 vezes o habitual, na manhã do dia 28 de abril, para 600 000 vezes, à noite. Próximo ao edifício 4, bastavam 15 minutos para receber uma dose letal. Quando o sueco Hans Blix, chefe da Agência Internacional de Energia Atômica, visitou Chernobyl em 5 de maio, o perigo se tornara ainda maior: as 195 toneladas de combustível nuclear ainda ardiam sob a rolha de chumbo despejada às pressas no enorme buraco que se tornara o edifício do reator (600 pilotos de helicóptero morreram de doença radioativa), cavando o solo. A qualquer momento, poderiam fazer contato com a água dos reatores adjacentes, provocando uma detonação de 3 a 5 megatons, mil vezes mais potente que a de Hiroshima. A 600 quilômetros dali, Minsk, na Bielo-Rússia, seria arrasada, e toda a Europa se tornaria potencialmente inabitável. Centenas de mineiros bielo-russos foram convocados para construir um túnel subterrâneo que desse acesso ao reator. Durante semanas a fio, trabalharam sem máscara nem camisa: o oxigênio era escasso e o calor, terrível.
O acidente de Chernobyl é o tipo de evento que dá margem às teorias mais insanas sobre os efeitos da radiação sobre o ser humano. Infelizmente, neste caso, boa parte delas coincide com a realidade. Com sua mania habitual de segredo e sua aversão costumeira a dados tangíveis, Moscou escondeu por quanto pôde o que se passara na sua usina nuclear de modelo obsoleto. Atirou mais de 500 000 vidas na tarefa de estancar a fonte de contaminação – os chamados “liquidadores” – sabendo que estava condenando a tropa de jovens operários e soldados, na faixa dos 20 aos 30 anos, a uma morte medonha. Mas fez questão de mantê-los na ignorância e, depois, inventou estatísticas risíveis, segundo as quais apenas 59 mortes poderiam ser atribuídas à radiação. Estima-se que, na verdade, metade dos liquidadores (ou seja, 250 000 pessoas) morreu antes de completar 40 anos. Nos anos seguintes, os casos de câncer de tireoide multiplicaram-se por até 10 000 nos hotspots, ou “zonas quentes” de radiação. O número de pacientes de leucemia aguda disparou no norte da Ucrânia e em toda a Bielo-Rússia, assim como o de tumores de rim, fígado, intestino, reto e pulmão, diretamente associados ao césio 137, um dos subprodutos da degradação do urânio. As crianças são sempre muito mais vulneráveis ao efeitos da radiação do que os adultos; nos hospitais lotados e sem recursos, compartilhavam infecções, já que não havia seringas descartáveis disponíveis – e isso por anos e anos, não só imediatamente depois do acidente. Outras centenas de crianças nasceram com gravíssimas deficiências físicas e/ou mentais resultantes de defeitos genéticos e foram abandonadas em lares criados para acolhê-las do jeito que desse – ou seja, com alguma boa vontade dos profissionais de saúde, e sem nenhum recurso. Novamente, só é possível estimar ou especular sobre os números: mesmo após a dissolução da União Soviética, agentes da polícia secreta continuavam a dar sumiço nos prontuários hospitalares e a exigir adulterações nos atestados de óbito. Aliás, toda a produção agrícola da região contaminada continuou a ser secretamente distribuída pela União Soviética nos anos seguintes ao acidente.
Hoje só é possível entrar na zona de exclusão por um número limitado de horas, com autorização especial (há tours turísticos, veja-se só). De uns poucos anos para cá, cientistas de várias áreas coletam material na zona de exclusão e na zona de atenção ao redor dela para tentar quantificar o estrago. Os resultados variam loucamente, conforme os desejos do governo que patrocine os cientistas: os bielo-russos dizem que está tudo uma beleza, os ucranianos acusam consequências gravíssimas. O que é certo é que, desde que a área ficou livre de habitantes e a natureza voltou a reocupá-la, os animais retornaram em grandes quantidades: alcateias de lobos, manadas de cavalos selvagens, castores, ursos, peixes, pássaros. Em todos, o exame do DNA acusa alguma mutação – mas, apesar delas, eles parecem saudáveis. O que é ao mesmo tempo uma boa notícia, e uma notícia triste: de fato, então, o homem é ainda mais daninho que a contaminação radioativa.