O duplo pontificado de Jude Law e John Malkovich na série ‘O Novo Papa’
O cineasta Paolo Sorrentino usa todo o seu formidável talento visual para testar tudo o que é profano na busca pelo sagrado
Afetado e melancólico, sempre estendido em algum divã ou mirando com os olhos marcados de delineador pelas janelas, o cardeal e duque inglês John Brannox (John Malkovich) faz um gesto de enfado quando o mordomo tenta lhe passar o celular — é Meghan Markle, de novo, querendo a opinião dele sobre o que vestir (mais tarde ele a aconselha: “O Dior, claro”). Brannox vem dando um baile na delegação do Vaticano que foi ao seu castelo instá-lo a aceitar uma candidatura ao papado. As circunstâncias são singulares: o americano Lenny Belardo, ou papa Pio XIII (Jude Law), está vivo, mas seu coma já dura meses. Houve um sucessor desastroso — e que morreu com rapidez muito conveniente. É preciso que o conclave eleja unanimemente, e logo, alguém capaz de estancar o crescimento da idolatria em torno do ferozmente conservador, combativo, místico e misterioso Pio XIII. Conhecido pela habilidade para o consenso, Brannox é o nome ideal, mas ele hesita, vacila e não se define. O ardiloso cardeal Voiello (Silvio Orlando), secretário de Estado do Vaticano, tem a solução: apelar à vaidade de Brannox, que durante toda a vida se sentiu à sombra de seu gêmeo morto, para afinal convencê-lo a se tornar João Paulo III. Em O Novo Papa (The New Pope, Itália/Inglaterra/França/Espanha/Estados Unidos, 2019), a série com que dá continuidade à extraordinária O Jovem Papa e que já está disponível na Fox Premium, o cineasta italiano Paolo Sorrentino explora paradoxos espirituais talvez ainda mais extremos que na leva de episódios de 2016. Como um São Tomé que toca a chaga de Cristo para se certificar de que ela (ou Ele) é real, Sorrentino sonda tudo que é tido como profano — sensualidade, venalidade, ganância, frivolidade, presunção, carência, confusão, desamparo, raiva, revolta — em busca das provas de sua convicção: a de que, nisso tudo, quase sempre há uma partícula, ou até mais, de sagrado.
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Sorrentino tem o dom não só de escrever maravilhosamente — os diálogos cortam como navalha, e as pregações de Pio XIII e de João Paulo III são arrebatadoras —, como também o de fazer seus atores se expandir de forma assombrosa dentro de seus papéis (a despeito da excelência do elenco como um todo, Law e Orlando continuam imbatíveis). Além disso, possui um domínio visual tão peculiar e exuberante que assistir aos seus Papas, ou ao formidável A Grande Beleza, ganhador do Oscar de filme estrangeiro de 2014, é uma rendição dos sentidos: opulentas, delirantes, desconcertantes — barrocas, enfim —, as imagens articulam aquilo que seria impossível colocar em palavras, ou que se fosse dito soaria vulgar ou apelativo. Por exemplo, a menção de que, em certa cena, uma mãe desesperada por dinheiro se prostitui a um homem deformado enquanto, ao fundo, ouve-se a Ave Maria de Bach; fica o choque, mas perde-se o poder da iconoclastia de Sorrentino, que demole símbolos para reerguê-los com novos sentidos.
A título de ilustração, veja-se a abertura: mais lascivas e menos vestidas a cada episódio, as jovens freiras que servem aos clérigos do Vaticano dançam com abandono à luz de cruzes de neon e ao som de Good Time Girl, da dupla Sofi Tukker. O objetivo de Sorrentino não é simplesmente colocar-se na soleira do desvario; um dos enredos de O Novo Papa acompanha o descontentamento das religiosas e seu desejo de que a Igreja dê a elas funções espirituais ativas — que a Igreja se modernize e as liberte de alguma forma, enfim. Mas a Igreja não é um iPhone, argumenta João Paulo III; não pode ser trocada por uma Igreja mais nova, porque tudo aquilo que pode ser trocado um dia termina no lixo. Em determinada altura desta nova temporada, Sorrentino troca a abertura, e as freiras deixam de ser o centro da atenção para se tornarem as observadoras boquiabertas do papa Pio XIII, que, de sunga branca contrastando com a pele bronzeada, caminha provocador por uma praia; tamanha é a beleza dele que uma das noviças, coberta por um manto azul-celeste como o de Nossa Senhora, desmaia. Nenhum caminho que possa levar ao sublime, defende Sorrentino, deve ser vetado.
Publicado em VEJA de 29 de abril de 2020, edição nº 2684
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