Black Friday: Assine a partir de 1,49/semana
Imagem Blog

Isabela Boscov

Por Coluna Materia seguir SEGUIR Seguindo Materia SEGUINDO
Está sendo lançado, saiu faz tempo? É clássico, é curiosidade? Tanto faz: se passa em alguma tela, está valendo comentar. Este conteúdo é exclusivo para assinantes.

Roman Polanski narra episódio de antissemitismo na França em novo filme

Polanski, o indivíduo, tem um crime na Justiça; Polanski, o cineasta, é capaz de produzir um filme de argumentos irrefutáveis como 'O Oficial e o Espião'

Por Isabela Boscov Atualizado em 4 jun 2024, 14h32 - Publicado em 13 mar 2020, 06h00

Não há dúvida sobre quanto é pessoal, para o diretor Roman Polanski, a história que ele narra em O Oficial e o Espião (J’Accuse, França/Itália, 2019), já em cartaz no país. Primeiro porque o caso de Alfred Dreyfus, o capitão judeu do Exército francês condenado em 1894 pelo crime de alta traição, é um dos episódios mais escandalosos do antissemitismo institucional que grassava na república das supostas liberdade, igualdade e fraternidade — e Polanski, judeu nascido em Paris e criado em Cracóvia, na Polônia, sabe na pele o que isso significa: aos 6 anos, só se livrou da liquidação do gueto e da câmara de gás de Auschwitz, para onde sua mãe, grávida de quatro meses, foi imediatamente mandada, porque o pai conseguiu fazê-lo passar por um buraco no muro, em uma fuga à qual se seguiram anos vagando sozinho pelo campo, escondendo-se e fugindo das tropas nazistas. Radicado em Paris desde 1977, quando escapou da Justiça americana por um crime infame e tão notório que quase dispensa recapitulações — as relações sexuais com uma menina de 13 anos —, Polanski nos últimos anos tem assistido a um êxodo de judeus da França, que abandonam o país em temor do recrudescimento da hostilidade contra eles. Não menos importante é que, depois de ser linchado pela opinião pública e passar anos preso na Ilha do Diabo, Dreyfus foi afinal inocentado para além de qualquer dúvida ou suspeita por um dos homens que haviam colaborado para sua condenação — o coronel Marie-Georges Picquart, que muito abertamente não gostava de judeus, mas gostava menos ainda de farsas grotescas como aquela de que Dreyfus fora vítima. Separar a opinião dos fatos, e o homem de sua obra — eis o pleito de O Oficial e o Espião.

+ Compre o livro O Caso Dreyfus, de Louis Begley
+ Compre ebook O Processo do Capitão Dreyfus, de Ruy Barbosa
+ Compre o livro J’accuse…! A verdade em marcha: 826, de Emile Zola
+ Compre o livro Polanski. A Filmografia Completa, de F.X. Feeney

À farsa em si: em 1894, a inteligência militar francesa detectou um vazamento de informações para a Alemanha, o inimigo para o qual perdera a Guerra Franco-Prussiana de 1870. A natureza das informações sugeria que o espião seria algum oficial com acessos muito específicos (depois se descobriria que até essa dedução fora equivocada). Quando quatro nomes vieram à tona, três deles nem foram considerados: Dreyfus (no filme, Louis Garrel), o único judeu no Estado­-Maior, foi automaticamente escolhido como suspeito e também já como culpado. O processo que se seguiu foi uma mistura de fraude, ilegalidade e incompetência, como Picquart (Jean Dujardin) viria a constatar quando, por sua participação no julgamento, ganhou um alto cargo no setor de inteligência. O coronel alertou todos os seus superiores para o erro cometido contra seu ex-aluno, que, aliás, desprezava. Foi rechaçado e instado a manter o silêncio sobre o assunto em todas as ocasiões. Não conseguiu: repugnava a ele que um inocente amargasse a prisão e que, para acobertar a bagunça, o comando militar estivesse em vias de dar uma promoção ao verdadeiro traidor. Picquart foi primeiro posto de escanteio e, depois, preso, mas antes e depois de sua libertação continuou trabalhando pela exoneração de Dreyfus.

FILME-J’ACCUSE-2
QUESTÃO PESSOAL - Polanski dirige Dujardin no set de O Oficial e o Espião: alerta sobre o perigo do clamor popular (01 DISTRIBUTION/.)

De início, uma dúvida incômoda se insinua — se, ao recuperar esse episódio célebre, Polanski estaria indiretamente reivindicando inocência em sua condenação pelo crime do qual ele é réu confesso, e de cuja punição fugiu com covardia deplorável ao descobrir que receberia uma pena exemplar. Polanski deu-se ao direito de levar uma boa vida na França, casar-se de novo (uma de suas outras mulheres, Sharon Tate, fora assassinada por seguidores do guru Charles Manson em 1969), ter filhos, continuar fazendo filmes (alguns ruins, mas outros belíssimos, como O Pianista, ou de inteligência cintilante, como O Escritor Fantasma) e ganhar Oscars, enquanto Samantha Geimer, a menina que ele embebedou e drogou, é até hoje perseguida pela sombra do abuso. Polanski, em suma, ficou livre, e quem cumpriu pena foi Samantha.

Não só Polanski tentou — inutilmente, ainda bem — forçar a mão da Justiça americana a um perdão integral para ele, em 2008, como desde então outras mulheres fizeram contra ele acusações semelhantes à de Samantha. Polanski, o indivíduo, valeu-se de maneira torpe de sua fama para cometer abusos e fugir à responsabilidade por eles. Indicado a doze César, o Oscar francês, por O Oficial e o Espião, o cineasta de 86 anos não teve coragem de comparecer à cerimônia, há algumas semanas — e vários presentes abandonaram a festa em protesto ao prêmio de direção concedido a ele.

Continua após a publicidade

E, no entanto, como é possível a qualquer um estar muito errado em determinadas coisas e certo em outras, Polanski, o cineasta, tece em O Oficial e o Espião um argumento irrefutável: o de que linchamentos públicos não são em hipótese alguma uma forma de justiça, e de que a justiça dos tribunais só é digna desse nome quando as pessoas que nos parecem detestáveis a recebem nos mesmos termos e na mesma medida de quem nos parece simpático. Dreyfus, um oficial exemplar, enfrentou vergonha e exílio e perdeu uma década de sua vida por ser judeu, o que na França do século XIX bastava como motivo de opróbrio. Polanski é um homem nada exemplar, mas ainda assim seu filme merece ser elogiado pelo rigor e sobriedade com que é conduzido, pela pertinência com que surge neste momento político — e pela clareza de suas ideias.

Publicado em VEJA de 18 de março de 2020, edição nº 2678

CLIQUE NAS IMAGENS ABAIXO PARA COMPRAR

Continua após a publicidade
Roman Polanski narra episódio de antissemitismo na França em novo filmeRoman Polanski narra episódio de antissemitismo na França em novo filme
O Caso Dreyfus, de Louis Begley
Roman Polanski narra episódio de antissemitismo na França em novo filmeRoman Polanski narra episódio de antissemitismo na França em novo filme
O Processo do Capitão Dreyfus, de Ruy Barbosa
Continua após a publicidade
Roman Polanski narra episódio de antissemitismo na França em novo filmeRoman Polanski narra episódio de antissemitismo na França em novo filme
J’accuse…! A verdade em marcha: 826, de Emile Zola
Roman Polanski narra episódio de antissemitismo na França em novo filmeRoman Polanski narra episódio de antissemitismo na França em novo filme
Polanski. A Filmografia Completa, de F.X. Feeney
Continua após a publicidade
logo-veja-amazon-loja

*A Editora Abril tem uma parceria com a Amazon, em que recebe uma porcentagem das vendas feitas por meio de seus sites. Isso não altera, de forma alguma, a avaliação realizada pela VEJA sobre os produtos ou serviços em questão, os quais os preços e estoque referem-se ao momento da publicação deste conteúdo.

 

Publicidade

Imagem do bloco

4 Colunas 2 Conteúdo para assinantes

Vejinhas Conteúdo para assinantes

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Black Friday

A melhor notícia da Black Friday

BLACK
FRIDAY

MELHOR
OFERTA

Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de 5,99/mês*

ou
BLACK
FRIDAY
Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba 4 Revistas no mês e tenha toda semana uma nova edição na sua casa (menos de R$10 por revista)

a partir de 39,96/mês

ou

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$71,88, equivalente a 5,99/mês.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.