Qual a explicação para o fetiche pelo castrismo das esquerdas paradas no tempo? Como é possível que aqueles que se consideram os detentores da superioridade moral da luta pelo bem fechem olhos, ouvidos e corações ao clamor que se ergueu da ilha no último 11 de julho pedindo “libertad, libertad, libertad”? Pode haver mensagem mais clara, mais primal, mais desesperada do que esta? Em lugar de se comoverem com a coragem dos cubanos que foram às ruas — gente de chinelo e roupas simples, como a dos bairros pobres Brasil afora —, as esquerdas continentais publicaram uma carta aberta no The New York Times pedindo o fim do embargo americano — um embargo que não embarga nada, fora investimentos diretos.
“O gênio escapou da garrafa e não adianta bloquear a internet”
Agarrados à imagem autocomplacente que têm de si mesmos, de heroicos combatentes anti-imperialistas, e ao espaço mitológico que Fidel Castro — “um gênio do mal”, na definição do historiador italiano Loris Zanatta — criou para si mesmo, os ilustres signatários parecem passageiros de uma cápsula do tempo. Na vida real, cubanos que têm uma vida inteira de lealdade ao regime estão rompendo com ele em menos tempo do que se leva para dizer “Cuba libre”. Vale a pena ouvir as considerações inteligentes e bem argumentadas que estão fazendo. “Quero uma Cuba independente, soberana, sem ingerências estrangeiras”, escreveu o cineasta Fernando Pérez. “Mas uma Cuba inclusiva, com direito à palavra, ao pensamento livre e ao respeito à liberdade individual.” É possível ser mais irretocável? Talvez Pablo Milanés tenha encontrado palavras mais eloquentes. “É irresponsável e absurdo culpar e reprimir o povo que se sacrificou e deu tudo durante décadas para sustentar um regime que, no fim, o que faz é encarcerá-lo”, disse o compositor de Yolanda, tão lindamente cantada pelo mesmo Chico Buarque de Hollanda que assinou a carta no Times sem uma mísera palavra de solidariedade ou simpatia pelos jovens que estão sendo condenados, a jato, a penas de até um ano de prisão por irem às ruas gritar “No tenemos miedo”.
Cuba é uma relíquia da Guerra Fria e um produto da formidável capacidade de administrar o poder de Fidel Castro. Sem uma nem outro, virou uma espécie de museu das perversões do socialismo à moda latina, incluindo a elevação de Fidel ao altar sincrético das semidivindades continentais. Regimes assim são porteira fechada, não podem se reformar, promover alguma abertura, deixar a panela de pressão soltar alguns uivos ou talvez perder alguns anéis. Qualquer mínima alteração nessa estrutura, e os dedos imediatamente são perdidos. Os cubanos que agora dizem “chega” não têm a alternativa de sair caminhando, como fizeram os moradores de Berlim Oriental, e se tornar invencíveis pelo número impossível de ser reprimido. Mais intransponível que o Muro de Berlim é a muralha do Atlântico, mas o espírito de resistência que está aflorando nas ruas e nas redes não vai permitir uma volta ao status quo anterior. O gênio escapou da garrafa e não adianta bloquear a internet.
Publicado em VEJA de 4 de agosto de 2021, edição nº 2749