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Supremos tribunais: urubus de toga ou excelsos imparciais?

Em geral, nem uma coisa nem outra, mas a politização exacerbada prejudica a imagem e as funções dos juízes constitucionais em vários países

Por Vilma Gryzinski 7 out 2019, 05h56

Piadinha americana:

“Um juiz dirige-se aos advogados que representam as partes litigantes de uma causa.”

“‘Vejam bem’, diz ele. ‘Ambos os doutores me deram uma propina’. Os advogados fazem expressão constrangida.”

“‘O doutor Leon me deu 15 mil dólares. E o doutor Campos me deu 10 mil dólares’.”

“O juiz põe a mão no bolso e tira um cheque. Entrega-o ao doutor Leon.”

“‘Agora que devolvi cinco mil dólares, vamos decidir a causa puramente com base no mérito jurídico’.”

Isso é coisa de juízes caipiras, claro, lá dos cafundós do Arkansas e adjacências.

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Mas a atuação dos togados das altas esferas, os guardiães dos guardiães, é atualmente debatida com muito mais do que o calor natural provocado pela interpretação da lei e da constituição.

Em lugares bem diferentes, com tradições diversas sobre o papel dos supremos tribunais, como Estados Unidos, Grã-Bretanha e Peru, para não mencionar as chamas que ardem na Praça dos Três Poderes, a chapa ferve.

Politização, captura de poderes legislativos, choques com o executivo, entre outros focos de incandescência, fogem espetacularmente da serenidade e da glacial imparcialidade associadas ao peso da toga mais honorável.

O caso do Peru, com a casquinha de institucionalidade e a instabilidade inerentes à América Latina, é quase alucinante.

Resumo rapidão: para começar o capítulo atual, tudo está ligado ao modelo de corrupção exportado pela construtora Odebrecht em parceria público-privada com a máquina comandada pelo apenado e influencer de Curitiba.

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Como o modelo investigativo e de amplo uso da delação premiada também foi exportado, a Lava Jato peruana capturou todos os presidentes dos últimos vinte anos.

Problema: o Congresso tem maioria, numa formidável surpresa, de representantes ligados aos partidos investigados.

Tentou uma manobra latina, ou ladina: nomear “gente sua” para as seis vagas do Tribunal Constitucional, que funciona no Peru em sistema rotativo e não vitalício.

Dez dos onze indicados são carne, unha e sabe-se lá que outras partes corporais com os partidos majoritários – fujimoristas e apristas.

Adivinhem qual seria sua missão principal.

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O presidente, que era vice, Martín Vizcarra, dissolveu o Congresso e antecipou novas eleições. O Congresso declarou-se não dissolvido e deu posse, no lugar dele, a Mercedes Araóz, que de segunda vice tinha passado a primeira.

Mercedes viu o tamanho da encrenca, “renunciou” e a encrenca ficou do mesmo tamanho. Governo e fujimoristas agora estão negociando eleições antecipadas de comum acordo.

TAPETES LUXURIANTES

O sopão peruano tem uma característica peculiar, em especial para quem vê o mundo com as lentes estritas de direita e esquerda.

Sindicatos e partidos esquerdistas menores apoiam Vizcarra e a Lava Jato.

Sem contar organizações populares e manifestações espontâneas de ódio ao “ninho de ratos”, gentil apelido dado ao Congresso onde os fujimoristas, que continuam com apoio forte do eleitorado, são a força dominante.

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Vizcarra foi eleito na chapa de Pedro Pablo Kuczynski, o outrora respeitado economista moderadamente liberal e ilustrado. O que não o impediu de ser contagiado pelo vírus Odebrecht e obrigado a renunciar.

Alberto Fujimori e sua filha e herdeira política, Keiko, ambos em temporada no sistema prisional, são da corrente populista de direita. Keiko é a comandante da sabotagem à Lava Jato.

Se e quando houver um acordo sobre o Tribunal Constitucional – sem falar no futuro político do país -, uma coisa é garantida: vai dar rolo.

Num mundo menos politicamente exaltado, seria loucura comparar o acidentado problema andino com a solidez institucional do Reino Unido.

Pois o tsunami do Brexit criou uma situação em que a Suprema Corte é acusada de legislar sem ter direito, interferir em decisões políticas e se comportar mais como um partido do que um órgão isento.

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Note-se que no sistema onde o Parlamento é a instância final de poder e a história está fincada no direito anglo-saxão, ou Common law, nem existia algo como um supremo tribunal de último recurso.

Num país de instituições orgânicas e antigas, onde só a Magna Carta, a mãe de todas as constituições, tem mais de 800 anos, a Suprema Corte é um bebê.

Foi criada em 2005, como parte das reformas políticas feitas por Tony Blair, o primeiro-ministro que tirou o trabalhismo do passado, mas criou um futuro altamente desconfortável para si mesmo.

O bafafá atual decorre da decisão da Suprema Corte, presidida pela juíza Brenda Hale, de considerar inconstitucional a suspensão temporária do Parlamento.

A manobra foi feita por Boris Johnson, com a autoridade de primeiro-ministro e líder do partido com mais representantes no Parlamento, e aprovada pela rainha Elizabeth II, um ritual ainda importante no sistema monarquista, embora o monarca tenha poucas opções de divergir.

A oposição soltou fogos e ficou bem mais complicada a posição de Boris, que quer forçar a aprovação de um plano próprio para conseguir tirar o reino na data prometida e exigida por lei, o próximo dia 31.

Brenda Hale, que tem título de baronesa e faz um estilo a hora do espanto, incluindo broches enormes em formato de insetos, virou ícone da esquerda.

Quase uma Ruth Bader Ginsburg, a juíza que continua incrivelmente viva aos 86 anos e vários cânceres, à qual antitrumpistas mais exaltados oferecem doar órgãos só para não “dar” a Donald Trump mais uma vaga na Suprema Corte americana.

Escrevendo na Spectator, Charles Day disse que a decisão da baronesa Hale, que logo vai deixar o cargo, e companhia foi um “escândalo constitucional”, especialmente num país onde foi gestado o direito anglo-saxão, com tradição de não maximizar o papel de advogados e juízes.

Nos países da linha do direito romano-germânico, ou Civil law, “os advogados são respeitados e os juízes reverenciados. Estão no topo da constituição. Antes do experimento de Tony Blair com uma Suprema Corte, os Lordes Juízes viviam num corredor apertado em cima do Parlamento e dividiam uma secretária.”

“Não tinham juízes auxiliares para servi-los nem tapetes luxuriantes para deleitá-los e sabiam que seu lugar era fora da política. É difícil enxergar alguma melhoria com o novo sistema.”

Pois agora outra corte superior, da Escócia, onde começou a história, deve ter outra pedreira. Decidirá se se Boris Johnson está sujeito a pena de cadeia se não pedir à União Europeia mais uma prorrogação do Brexit.

Boris também recorrerá na justiça: defenderá perante a Suprema Corte o direito de não pedir um prazo extra.

A baronesa Hale, que usou um broche de aranha gigante na primeira decisão, escolherá o que como mensagem dessa vez? Um escorpião?

ATIVISMO JUDICIÁRIO

O sistema de uma Corte Suprema foi criado pela constituição americana, com o conhecido objetivo dos fundadores da nação de equilibrar os três poderes de forma a que todos vigiassem todos justamente para evitar abusos.

Desde o início deu confusão. Um dos primeiros processos de impeachment do novo país foi aberto contra um juiz da Suprema Corte, Samuel Chase.

Não um juiz qualquer, mas um dos signatários da Declaração de Independência dos Estados Unidos, nomeado por ninguém menos do que George Washington.

E encrencado com ninguém menos do que Thomas Jefferson, outro pai da pátria.

Motivo: ativismo judiciário. E dos bravos. Chase e colegas entraram em choque com o Congresso e com Jefferson por desejo de aumentar os próprios poderes.

Impulsivo e falastrão, Chase também foi acusado de deturpar politicamente julgamentos importantes.

Mesmo com fama nada boa, acabou vencendo no Senado, a instância final dos processos de impeachment.

Foi somente durante algumas décadas que prosperou a ideia de juízes de grande e reconhecido saber jurídico, espetacularmente imparciais, aprovados pelos dois partidos, com zero influência dos presidentes que os haviam indicado para a Suprema Corte, quando não votando “contra” eles.

A politização progressiva atingiu o ápice com a última nomeação, a de Brett Kavannaugh. Acusado de um abuso sexual quando era adolescente, o juiz foi pintado como um monstro brutal pela oposição e a imprensa antitrumpista.

Sua confirmação desencadeou ataques de histeria coletiva. O caso não acabou. Duas jornalistas do New York Times lançaram um livro em que denunciam um outro abuso.

Segundo o livro, durante uma bebedeira em festa universitária, colegas de Kavannaugh tiraram seu pênis para fora, passando-o no rosto de uma jovem.

A história poderia ser contada de outra forma: amigos praticaram ato de homoerotismo coletivo com o juiz. Sem falar na mecânica da coisa.

A mulher envolvida diz que não se lembra de nada e não quer falar sobre o assunto.

Se as acusações foram verdadeiras, até hoje não houve comprovação. Se forem inventadas ou imaginadas, Kavannaugh viverá sempre à sombra delas.

E a Suprema Corte inevitavelmente acabará envolvida no processo de impeachment contra Trump, aumentando ainda mais o clima de extrema politização daquele que deveria ser o mais imparcial e sereno dos guardiões da constituição.

Não o absurdo e cruel guardião do Portal da Lei, criação de Kafka, com seu casaco forrado de pele e longa barba à moda dos tártaros, impedindo eternamente o pobre camponês de ver o que acontecia além dele.

Os camponeses de hoje talvez sejam um pouco menos dóceis.

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