O impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff destravou as condições para que o Brasil pudesse entrar em um dos mais virtuosos ciclos de reformas da história da nossa economia. Na contramão da tradição e do senso comum — que não acredita em planos e programas de governo —, isso se materializou em uma série de medidas conhecidas como Ponte para o Futuro.
Com base nela, de 2016 a 2019, o Brasil alinhou iniciativas que resultaram, até o ano passado, na demolição da taxa de juros, na redução da dívida pública e na ampliação dos horizontes de investimento. As reformas foram implementadas sem ameaça às nossas reservas, com a preservação de direitos — alguns mais do que injustificados — e dentro do marco legal, com ativa participação dos três Poderes.
Nosso “rodriguiano” complexo de vira-lata e o desejo de que as reformas fossem em outra direção sempre trataram de obliterar a visão da opinião pública sobre o real alcance dos feitos. Mesmo assim, em fato inédito na história da humanidade, uma reforma previdenciária contra privilégios foi apoiada pela população nas ruas.
Para mostrar que nem tudo que reluz é ouro, muito do que se realizou de positivo veio do lado ruim da política. Tradicionais fisiologistas e clientelistas votaram contra os seus instintos, provando que a teoria da escolha racional em política é “mais ou menos”. Enfim, o enredo ia bem até acontecer a pandemia.
O quadro instalado pela Covid-19 no país demandou esforços, como é natural. Inúmeras medidas foram adotadas e o Brasil poderia estar muito pior se não houvesse a expansão do crédito, o auxílio emergencial e a transferência direta de recursos para estados e municípios.
“Se o plano de reformas era essencial para o futuro do país antes da pandemia, agora passou a ser vital”
Porém, à medida que a busca por superação da pandemia fica mais urgente, o caminho natural e virtuoso é abandonado em favor de uma atitude perigosa, com base em uma agenda egocêntrica. Um grave risco. Se o plano de reformas era essencial para o futuro do país antes da pandemia, agora passou a ser vital.
A atitude dos Poderes, no entanto, está indo na direção oposta: 1) o esforço das reformas ficou limitado à PEC dos gatilhos para financiar o Renda Cidadã; 2) os debates sobre temas estratégicos foram abandonados, caso da autonomia do Banco Central, da Lei de Falências, do marco do gás, do licenciamento ambiental, do novo marco do setor elétrico, das debêntures de infraestrutura e outros; 3) outras pautas, e não as de ataque às mazelas amplificadas pela Covid-19, foram privilegiadas.
No curto prazo, quais são essas pautas? Para o presidente Jair Bolsonaro, as pautas que interessam são as que contribuem para a construção do caminho que leve à reeleição. O que significa que todo cálculo político está sendo baseado no que pode ajudar ou ameaçar a sua campanha. Já para o Congresso, a prioridade é consolidar o controle do Orçamento e ver quem vai mandar no Legislativo na corrida sucessória em 2022. Para o Judiciário, o importante é manter os aliados radicais do governo contidos pela ameaça de investigações e assegurar a preponderância da judicialização como instrumento de arbitragem política.
É um jogo de posições, e não de reformas. Sem uma piora expressiva do quadro — o que não deve ser descartado —, as reformas vão entrar no cardápio como batatas fritas murchas e frias.
Publicado em VEJA de 4 de novembro de 2020, edição nº 2711