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Ricardo Rangel

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Bolsonaro nos mostra o espelho

Líder reflete um Brasil do século XVII, que precisa ser abandonado

Por Ricardo Rangel Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 13h54 - Publicado em 5 fev 2021, 06h00

Jair Bolsonaro, amante de ditaduras, ameaçou fechar o Congresso e o Supremo. Em troca, o Congresso submeteu-se a ele espontaneamente e pode nomear uma bolsonarista radical, golpista, à frente da mais importante comissão da Câmara.

Bolsonaro faz campanha contra o isolamento, máscara e vacina. Por sua causa, não temos vacinas suficientes — e, se as tivéssemos, não teríamos seringas nem agulhas. Muitos dos quase 230 000 brasileiros mortos por Covid-19 morreram por sua causa. A economia vai muito mal, o desemprego bate recorde. Mas a popularidade de Bolsonaro, apesar de alguma queda, segue alta.

Bolsonaro se comporta como racista, misógino, homofóbico, persegue índios, tenta armar a população, defende licença para matar para a polícia, ofende padrões mínimos de civilidade. E é o favorito para 2022.

Enlouquecemos?

“Mas a alternativa, o PT, é pior!” Conversa. O PT saiu do poder há cinco anos e sua única chance de vencer é contra Bolsonaro — que, por isso mesmo, se esforça para mantê-lo vivo. Bolsonaro tem a mesma visão desenvolvimentista do PT e também loteou o governo para o Centrão. E esse desmonte de hoje o PT nunca fez: é incrível, mas Bolsonaro consegue ser pior.

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“O presidente tem a mesma visão desenvolvimentista do PT e também loteou o governo para o Centrão”

“Mas é honesto.” Lorota. Bolsonaro interferiu no Coaf, na Receita, na PGR, sabotou o projeto anticrime de Moro e expulsou-o do governo, enterrou a Lava-­Jato. Gastou bilhões de dinheiro público para eleger seus candidatos no Congresso. Muitos de seus atos são considerados criminosos. Sua conduta quando deputado sugere desvio de dinheiro público e a família está envolvida em transações financeiras espúrias. E ainda tem o Queiroz e as milícias.

“Mas tem a política ‘liberal’ do Guedes.” Ridículo. Bolsonaro sabotou a reforma da Previdência (que foi encaminhada por Temer e aprovada por Maia). A reforma tributária é inócua, a administrativa foi esvaziada pelo presidente, que é contra as privatizações e interfere na gestão de estatais. Em abertura comercial nem se fala. Com Bolsonaro de olho em 2022 e o Centrão no poder, só tolos acreditam em reformas expressivas.

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Resta a alternativa desconfortável: o presidente é popular não apesar de ser quem é, mas porque é quem é.

Bolsonaro é o Brasil do século XVII: arcaico, tosco, patriarcal, patrimonialista, preconceituoso, espoliador. Essa herança está entranhada em todas as camadas do Brasil atual, até na camada mais alta e sofisticada, lida e viajada, que se fascina com a arquitetura de Paris, mas em geral não se incomoda que metade dos brasileiros não tenha esgoto.

Há muita gente que acha que negro não precisa ser escravo desde que fique longe da vista. Que mulher pode sair de casa desde que não progrida demais na profissão. Que pobre pode comer desde que “saiba seu lugar”. Que homossexual pode existir desde que viva sua sexualidade no gueto. Que índio pode viver desde que vire um “ser humano normal”. Bolsonaro é popular em grande medida porque autoriza tais eleitores a serem preconceituosos e torpes sem culpa (ainda que tantos ignorem ser esse o motivo).

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Mas Bolsonaro também presta um serviço ao Brasil como um todo: ele nos mostra um espelho. A imagem é repugnante, mas é preciso contemplá-la. Reconhecê-la. Transformá-la.

Publicado em VEJA de 10 de fevereiro de 2021, edição nº 2724

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