Os militares bem que deram a dica. O general Augusto Heleno acusou ONGs, índios, o PSOL e até o DiCaprio de patrocinarem fake news contra Bolsonaro e de trabalharem “24 horas por dia para manchar a nossa imagem no exterior, em um crime de lesa-pátria” (Heleno acha que governo e pátria são a mesma coisa). E disse que as críticas estrangeiras sobre o desmatamento na Amazônia visam a “prejudicar o Brasil e derrubar o governo Bolsonaro”.
Ramos atribuiu a chuva em Mato Grosso à visita de Bolsonaro, pois “Deus está com o presidente” e “continuará a abençoar o Brasil, em que pese (sic) todas as campanhas contra esse governo!”. Deus é brasileiro, está com o Messias e não abre.
A paranoia, o delírio e o messianismo (epa) deram o tom do discurso na ONU. Bolsonaro inventou que há uma campanha de desinformação contra o seu governo; que o Supremo o impediu de agir contra a pandemia; que a culpa das queimadas é de índios e caboclos; que combate o desmatamento com rigor; que não faltou atendimento nos hospitais; que cuidou dos índios; que o óleo no Nordeste foi terrorismo. E muito mais. Mais desconectado da realidade, impossível. Fosse um cidadão privado, correria o risco de ser internado pela família em um hospício.
Não se sabe se Bolsonaro acredita nas próprias lorotas, se supõe que algum país acreditará, ou se o que quer é tão somente engabelar o eleitorado. Consta que os militares exultaram com o discurso que ajudaram a escrever: ele explica a realidade como a veem (distorcida) e reclama da perseguição que fantasiam. Mas o Brasil tem imprensa e os países têm embaixadores: ninguém precisa de Bolsonaro na ONU para explicar o que está havendo aqui.
“A paranoia, o delírio e o messianismo deram o tom do discurso de Bolsonaro na ONU”
Discursos não servem para explicar — ou para enganar — nem para reclamar. “Nunca explique, nunca reclame”, ensinou Benjamin Disraeli. Discursos servem para convencer. E para obter algo. O da ONU deveria servir para convencer o mundo de que o Brasil está ciente da gravidade do problema ambiental e que vai tomar providências. Ao mentir que vai tudo bem, Bolsonaro convenceu os nossos parceiros comerciais de que a sua palavra não vale nada e que não vai mudar de atitude. E nada obteve. A União Europeia tende a enterrar o acordo comercial, nos impor sanções e buscar outros fornecedores.
Há um componente solipsista no governo. O solipsismo é a doutrina segundo a qual só existem o eu e suas sensações, tudo o que parece externo é, na verdade, uma extensão do eu. Bolsonaro e os militares supõem que não existe crise no ambiente porque assim o querem, e que os outros vão acreditar nisso porque eles assim o dizem. E que mentir na ONU não nos trará prejuízo.
O solipsismo do governo não se limita ao ambiente, é grave sobretudo na economia. Bolsonaro precisa cortar 20 bilhões de reais para respeitar o teto de gastos, mas desidratou a reforma administrativa, estimulou o Congresso a dar 1 bilhão às igrejas, desagrada aos parceiros comerciais, quer criar Renda Brasil e Pró-Brasil. Enquanto isso, a inflação ressurge, o juro de longo prazo sobe, a dívida fica maior e mais curta.
O solipsista não se suicida sozinho. Ele nos leva junto.
Publicado em VEJA de 30 de setembro de 2020, edição nº 2706