‘Brincando com Fogo’: reality é analogia perfeita do namoro pós-pandemia
Na onda dos programas de pegação, atração da Netflix explora com sadismo a privação do sexo - e propõe que participantes priorizem interações emocionais
É antiga a tradição do reality show que busca unir pares, apostando no romance e na química entre duas pessoas como um atrativo para ser observado pelos espectadores do outro lado da TV, sejam estes solitários ou românticos incuráveis, também ávidos consumidores de roteiros folhetinescos. A evolução do formato “reality de namoro” desembocou recentemente no “reality de pegação”. Nessa nova cartilha, o compromisso está fora de cogitação. A regra é beber, dançar, beijar quantas bocas puder, e, quem sabe, ir para debaixo do edredom — isso, quando se escondem com o edredom. São programas como De Férias com Ex Brasil, da MTV, e Soltos em Floripa, do Prime Video, da Amazon, que refletem o cotidiano da geração dos aplicativos de relacionamento: a escolha de pretendentes é feita em segundos, baseada na aparência física, e raramente vai além do encontro de uma noite. A pegação descompromissada, porém, é um hábito que o coronavírus chegou para mudar.
E quem acompanhou a mudança, quase sem querer, foi o reality da Netflix Brincando com Fogo. Desde a sua estreia em 17 de abril, o programa (gravado antes da pandemia) cavou trincheira no ranking de mais assistidos da plataforma. Confinados em uma mansão à beira-mar, 14 jovens com aversão a relacionamento sério são especialistas em usar a beleza como arma de sedução para conquistar o sexo oposto (ou o mesmo sexo). Enquanto brindam suas qualidades físicas (literalmente, eles brindam pelo poder da beleza), os participantes são avisados que estão lá para concorrer a um prêmio de 100.000 dólares – cerca de 500.000 reais. Porém, há uma pegadinha: para levar a bufunfa, os jogadores não podem ter nenhuma relação sexual – nada de beijo, sexo, até masturbação. A grana é um incentivo para que eles aprendam a ter relações genuínas, baseadas na amizade, na conversa e no companheirismo. O que era para ser um paraíso se transforma em uma clínica de reabilitação sexual para compulsivos da fornicação.
A missão é difícil para o grupo. Cada infração isolada desconta um tantinho do prêmio final geral. Um beijo, por exemplo, custa 3.000 dólares, o equivalente a pouco mais de 15.000 reais. O ato sexual desconta 20.000 dólares (100.000 reais). No terceiro episódio, o valor do prêmio já caíra para 50.000 dólares (a série tem oito capítulos) – e não foi com amor verdadeiro e puro que os participantes chegaram a este resultado.
É difícil, em plena pandemia que limitou e muito o contato físico, não assistir ao reality e pensar como o coronavírus já tem afetado relações do tipo. Qualquer toque entre os desconhecidos nas cenas causa pensamentos que vão do “nossa, não é saudável fazer isso. E o corona?” até o “que saudade de fazer isso”. A dita geração Z e seus precursores, os millennials, agora são obrigados a namorar à moda antiga. Cada um na sua casa, com mais conexões emocionais do que físicas. Se o “cardápio deslizante” dos aplicativos, que expõe pessoas como produtos do supermercado, promovia perguntas como “qual sua altura?” e “quer beber algo hoje?”, agora as conversas são substituídas por “está se cuidando?”, “sentiu febre?”, “me indica um filme na Netflix?”, “tá usando álcool em gel?”.
Por essa ótica, um De Férias com o EX parece datado: o namoro na vida real vai mudar, e os próximos realities terão de se adaptar. Claro, a vida pós-coronavírus pode até voltar ao que era antes, com pessoas aglomeradas em festas e beijos em estranhos. Mas, com certeza, vai levar um tempo. Até lá, resta ao jovem assistir ao sufoco dos participantes de Brincando com Fogo e pensar que, na vida real, o prêmio de 100.000 dólares nada mais é que a própria saúde.