Vastamente consumida nos campos de batalha na Guerra do Vietnã, no início dos anos 1970, a cetamina havia sido criada uma década antes como um potente anestésico. Empregada em procedimentos cirúrgicos e no alívio de dores intensas, em pessoas e animais, como cavalos, o fármaco se disseminou, até ingressar no rol dos medicamentos essenciais da Organização Mundial da Saúde (OMS). A comprovação de sua eficácia no tratamento de depressões severas já é mais recente e muito útil. O enrosco com tal medicamento, como ocorre com tantos, é que ele passou a ser usado ilegalmente para fins recreativos e acabou migrando para um outro front — o do combate às drogas.
Popular entre frequentadores de baladas movidas a música eletrônica, a cetamina, também chamada de ketamina ou special key, experimenta um perigoso avanço nas pistas das capitais brasileiras, sobretudo em festas de jovens mais abastados, dado que custa caro. Com efeitos sedativos, ela primeiro relaxa para, depois, conduzir a pessoa a uma viagem alucinógena, não raro acompanhada de amnésia — daí a substância, há tempos disseminada nos Estados Unidos, ser depositada em coquetéis ministrados no velho golpe boa-noite-cinderela, no qual a vítima, dopada, é roubada e às vezes abusada.
Sua presença na noite vem sendo cada vez mais notada, um retrato de bem articulados esquemas de desvio da droga das prateleiras de remédios de uso controlado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Em teoria, o composto só pode ser adquirido por unidades médicas e empresas do ramo veterinário, mas investigações da Polícia Federal mostram que os funcionários são cooptados por quadrilhas que, em poder de fartas quantidades, comandam um mercado que gira vultosas somas. Foi a PF que acendeu o sinal amarelo, enfatizando que o comércio criminoso da droga havia atingido patamar inédito. Pela primeira vez, em dezembro passado, o órgão prendeu integrantes de um bando que comandava uma engrenagem interestadual de tráfico do anestésico — em 2022, contabilizavam 7 milhões de reais em frascos desviados. A estrutura envolvia um negócio de fachada na área da agroveterinária, e a carga tinha como destino Rio, São Paulo, Pará, Rio Grande do Sul e Distrito Federal. É um cenário que exige atenção: dados da PF indicam que as apreensões de cetamina quintuplicaram em três anos.
Os jovens que aderem à assombrosa onda costumam subestimar seus comprovados efeitos colaterais. De inofensiva, a cetamina não tem nada. Seu uso irregular causou, por exemplo, a morte do ator Matthew Perry, o inesquecível Chandler da série Friends, em outubro de 2023, aos 54 anos. Ele não resistiu ao consumo excessivo do medicamento, segundo revelou a perícia. É sabidamente comum que os usuários deem em uma noitada vários “tiros”, jargão que se refere a cada inalação. Vendido em pó, a versão mais comum nas baladas, e na forma líquida (injetável ou em spray nasal), o entorpecente vem contido em embalagens de 50 mililitros, o equivalente a trinta doses, e sai na faixa de 400 reais, o que o põe no escaninho das drogas mais caras. Além de uma sensação de torpor, para muita gente a cetamina produz distorções visuais e auditivas, apagões e alucinações. “O indivíduo perde a noção do perigo, aumentando-se exponencialmente os riscos de queda, acidentes de carro e, em casos extremos, até de suicídios”, explica o psiquiatra Jorge Jaber, dono de uma clínica no Rio de Janeiro onde o número de dependentes dessa droga dobrou no ano passado.
São vários os relatos em que os jovens se colocam em situação de risco, sem se dar conta do sombrio terreno no qual estão caminhando. Assíduo frequentador de raves, o carioca Roberto Accioli, 25 anos, que atua na área de marketing, pisou no arriscado território por curiosidade. “Por mais que a cetamina dê inicialmente paz e leveza incríveis, ela expõe você a coisas ruins. Vivi momentos apavorantes e decidi parar de usá-la”, relata Accioli. Após aspirar algumas doses do anestésico em uma festa, ele foi tomado por uma alucinação em que uma multidão invadia o local e espancava os presentes. Apavorado, saiu correndo, pegou um carro de aplicativo e ficou seis horas desaparecido. Quando acordou, estava no hall de um prédio desconhecido, sem documentos nem cartão de débito, que haviam sido furtados. Ele não está solitário nessa jornada de desfecho imprevisível. “Comecei a cheirar nas festas e, aos poucos, a droga tomou conta da minha vida, prejudicando faculdade e trabalho. Cheguei a usar várias vezes por dia”, conta um administrador de 29 anos, há quatro meses internado para tratamento, que pediu anonimato.
A experiência médica sustenta quão nociva é a droga quando consumida sem receita, com o deturpado propósito recreativo. À frente da clínica Huxley, em São Paulo, o psiquiatra Fábio Pinheiro lança um alerta sobre o elevado risco de overdose embutido no uso. “É muito frequente ocorrer, especialmente se ela é misturada a outras substâncias”, afirma o especialista, lembrando o impacto na pressão arterial e a dificuldade de respirar que pode provocar. Embora só agora tenha aportado com tudo no Brasil, a cetamina já configura uma epidemia nos Estados Unidos — em 2023, o FDA, a agência reguladora americana, se pronunciou sobre seu indiscriminado e perigoso consumo.
O bilionário Elon Musk deu visibilidade à substância ao declarar recorrer a ela para tratar de seu “estado de ânimo negativo”. Que os leigos não se confundam: sua eficácia no duelo contra depressões profundas é comprovada, desde que com rigorosa supervisão médica. Também os danos ao sistema urinário, investigados por especialistas na cruzada contra o mau uso do medicamento, foram amplamente registrados em clínicas e hospitais da Inglaterra, outro país atento à praga da cetamina. “No Brasil, já estamos recebendo casos de dependentes com esse problema, antes raríssimos”, conta Cássio Riccetto, da Sociedade Brasileira de Urologia. Mais um sinal inequívoco de que a “droga da balada” precisa ser varrida das pistas e ceder lugar à verdadeira festa.
Publicado em VEJA de 17 de maio de 2024, edição nº 2893