A ocasião faz a máscara: ela protege, ajuda a protestar e mais
Cobrir o rosto sempre foi um espelho de medos. Agora a peça ganhou novos propósitos, que passam pelo cuidado, sim, mas pode servir até para protesto
Não tem remédio: a máscara chegou para ficar. Enquanto o contágio do novo coronavírus não estiver sob controle, e talvez até depois disso, é consenso que quem sair de casa, ou abrir a porta para atender algum entregador, terá de estar com a parte de baixo do rosto coberta. A adaptação não é fácil, já que a face é justamente o que distingue uma pessoa da outra, e não mostrá-la levanta questões de identidade e de pura e simples antipatia. “As máscaras criam uma barreira entre a pessoa e o mundo. Elas protegem, mas, ao mesmo tempo, passam o recado de que quem as usa não quer chegar perto dos outros”, define a estilista francesa Marine Serre, ativista do meio ambiente que desenha e comercializa o produto desde 2019. Goste-se ou não, porém, o fato é que agora todo mundo precisa ter o acessório, restando ao mascarado, na medida do possível, tirar prazer do inevitável. Daí a profusão de modelos oferecidos, principalmente on-line, a mostra cabal de que, em vez de esconder, a máscara virou, vejam só, uma manifestação de individualidade.
Os números comprovam o imenso interesse. Desde que a Organização Mundial da Saúde liberou a produção caseira, tutoriais de passo a passo foram vistos mais de 130 milhões de vezes no Brasil e a busca pelo termo “máscara” bateu o recorde da série histórica do Google Trends, iniciada em 2004. No comércio virtual, há produtos que expressam protesto (nas manifestações recentes contra o racismo, a frase Black lives matter — “vidas negras importam” — se tornou quase obrigatória), outros que exaltam artistas e times de futebol, e ainda estampas que vão do xadrez e bolinhas a Hello Kitty e super-heróis. Além de dar mais leveza a um acessório que traz a marca infeliz da enfermidade e do perigo, “decorar a máscara é uma forma de convencer adultos e crianças mais resistentes a usá-la”, observa Carla Lemos, autora do livro Use a Moda a Seu Favor.
A máscara que cobre nariz e boca surgiu nos hospitais no fim do século XIX, com o propósito — que permanece até hoje — de evitar que microrganismos dispersados pela equipe médica contaminassem feridas abertas. Ganharam o rosto de todas as pessoas na Ásia, justamente em decorrência de epidemias, e acabaram se tornando, naquela região, uma expressão de civilidade e respeito ao próximo. Em Hong Kong, território semiautônomo da China sacudido há mais de um ano por mobilizações populares pró-democracia, a máscara virou praticamente uniforme — adotado, inclusive, em convulsões em outras partes do mundo. Agora, como forma de proteção contra o vírus onipresente, é a primeira impressão que as pessoas passam umas às outras. Sem escapatória, pelo menos para quem tem bom senso.
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Clique e AssineAderindo cedo ao hábito de sorrir com os olhos, celebridades como a atriz Gwyneth Paltrow e a modelo Bella Hadid foram pioneiras ao postar o rosto no Instagram ainda coberto com máscaras mais tradicionais. Desde então, o acessório se sofisticou. Há quem faça questão de combinar a máscara com a roupa, ou customizar a estampa, como a apresentadora Sabrina Sato, ou replicar cores, como Nancy Pelosi, a presidente (democrata) da Câmara americana. Os preços variam de 10 reais a mais de 500 reais, esse último na etiqueta de grifes de luxo que, em geral, dizem converter parte da renda a causas meritórias. Uma marca americana criou o Clube da Máscara, no estilo dos clubes de livros — cada mês o sócio recebe uma diferente. A carioca Dress To, utilizando sobras de tecidos, confeccionou 20 000 peças para doação e já vendeu outras 3 000, a 12,90 reais a unidade. “Claro que não substitui a receita da venda de roupas, mas ajuda o caixa a girar”, diz a dona, Thatiana Amorim. “A máscara esconde e, ao mesmo tempo, comunica, uma dialética interessante que depende do contexto”, pondera Christos Lynteris, antropólogo da medicina da Universidade de St. Andrews, da Escócia. Neste momento, o contexto está mais para comunicar. Use e abuse.
Publicado em VEJA de 17 de junho de 2020, edição nº 2691