O amor da Gabriella pelo Palmeiras veio da infância. Desde os 4 anos eu a levava com o irmão ao estádio. Assistíamos a todos os jogos, e ela quis entrar para a torcida organizada, como eu. O futebol sempre fez parte de nossas vidas e era ela, Gabi, quem mais mobilizava a família. No trágico dia em que se foi, estava especialmente animada. Quando saiu para o Allianz Parque, parecia que ia a uma festa. As partidas eram sua verdadeira balada. Ela preferia chegar cedo para se encontrar com os amigos. E naquele sábado, 8 de julho, não foi diferente. O jogo contra o Flamengo começava às 19h30 e, a seu pedido, a deixei no metrô às 14 horas. Como eu tinha marcado ensaio de bateria da torcida, desta vez não a acompanhei, mas estava tudo certo: nos encontraríamos antes do início do jogo. A última vez que eu falei com ela foi por áudio, pouco antes de sua morte. Recebi uma mensagem dela avisando que estava subindo para a arquibancada com o pessoal. Em seguida, dizia: “Pai, vamos nos ver”.
Por volta das 17 horas, quando enfim me aproximei do estádio com minha esposa, mandamos uma mensagem para Gabriella perguntando onde estava. Sem resposta. Ficamos preocupados, achando que o sinal estava ruim e não a encontraríamos. Passamos inclusive pelo local em que aconteceria a briga entre as torcidas que acabou custando a vida da minha filha. Não havia sinal de tumulto. A notícia de que Gabi havia sido agredida só chegou depois do jogo. Meu telefone registrava mensagens e ligações perdidas de amigos avisando que ela estava ferida. Foi muito azar. Me disseram que só havia ido ao fatídico lugar em que perderia a vida porque queria trocar de blusa, numa área reservada à torcida organizada. Era justamente a única zona em que torcedores dos dois clubes estavam lado a lado. A confusão começou de repente e, mesmo ela não tendo nada a ver com aquilo, foi atingida por uma garrafa de vidro que se espatifou em sua cabeça, perto do pescoço. Soube da história em etapas. Quando minha cunhada ligou, tremi pela primeira vez: Gabriella estava passando por uma cirurgia na Santa Casa.
Ficamos em choque, mas não imaginamos o pior. Quando chegamos à Santa Casa, ela estava operada na UTI. O médico então apareceu e soltou palavras que abriram uma ferida funda em meu peito: “O ferimento pegou na jugular e o estado de saúde dela é gravíssimo”. Durante o procedimento, Gabi teve duas paradas respiratórias. Em uma delas, ficou cerca de seis minutos praticamente morta. Entendemos que a situação era quase irreversível. Nessa hora, minha mulher desmaiou. A ideia de não tê-la nunca mais conosco era assustadora, a pior de todas as dores. Num momento desses, você mantém a esperança e a fé acesas. Foi de manhã cedo que o responsável na UTI recomendou que fôssemos embora. Ela estava em coma induzido, mas ainda conversamos com nossa filha e pedimos para não desistir. Percebemos que o nível de saturação dela até aumentou. Foi o último contato que tive com Gabriella.
No dia seguinte, veio a notícia da morte. Chorava sem parar, um desespero. Me arrependi de não ter passado a noite lá, de não ter ficado com ela até o final. Perder uma filha não é a ordem natural das coisas. Recebemos uma visita de um representante do Palmeiras, mas o clube não deu nenhum suporte. Foi a ala não violenta de torcedores, gente pacífica que só quer se divertir com o futebol, que bancou o velório. Houve um jogo em homenagem a ela três dias depois. Achei que me traria algum conforto. Era como estar ao seu lado. Mas acabei sofrendo mais. Tenho muito orgulho de ter sido o pai dela, que fazia trabalhos de caridade em escolas para deficientes e ia, no mês que vem, começar a faculdade de tecnologia da informação. Era o seu sonho, um sonho interrompido aos 23 anos pela violência que desvirtua a alegria do esporte. Não pretendo voltar ao estádio. Sem Gabriella, perdeu a graça.
Ettore Marchiano em depoimento dado a Mafê Firpo
Publicado em VEJA de 26 de julho de 2023, edição nº 2851