A poucos passos da igualdade: a evolução do feminismo nos últimos 70 anos
Um robusto estudo americano explicita os avanços da causa, mas também documenta a persistência de alguns estereótipos machistas
“Elas têm o direito de trabalhar onde quiserem, contanto que já tenham o jantar preparado para quando você chegar em casa.” A tirada é do machão prototípico do cinema americano — John Wayne (1907-1979), astro de clássicos do faroeste. Foi pronunciada em 1974, quando alunos da Harvard desafiaram o ator para um debate sobre o movimento, então em polvorosa, de liberação feminina. Embora já um tanto anacrônica na década de 70, a frase de John Wayne sintetiza uma mentalidade que por muitos anos definiu a forma como a mulher era retratada na sociedade americana (e não só nela, aliás): um utilitário doméstico a serviço do homem. Nos dias inflamados do Me Too, movimento desencadeado pela revelação de casos de assédio e abuso sexual em Hollywood — e, em particular, pela exposição do comportamento predatório do produtor Harvey Weinstein —, um ator que fizesse declarações vagamente similares às de John Wayne estaria condenado ao opróbrio. A igualdade entre mulheres e homens, embora ainda não plenamente efetivada, tornou-se uma causa consensual — avanço que é comprovado por um amplo estudo, publicado na quinta-feira 18, sobre a maneira como a mulher vem sendo percebida na sociedade americana desde os anos 40. A mesma pesquisa, porém, demonstra que alguns estereótipos negativos são renitentes — sobretudo a ideia de um “sexo frágil” menos competitivo na corrida pelos melhores postos do mercado.
O robusto trabalho, veiculado no periódico científico American Psychologist, foi resultado da análise de dezesseis pesquisas de opinião pública sobre estereótipos de gênero, todas nos Estados Unidos. Coletados entre os anos de 1946 e 2018, os dados foram examinados por pesquisadores da Universidade Northwestern, entre 2010 e 2018. O compilado inclui entrevistas com mais de 30 000 indivíduos, realizadas tanto pessoalmente quanto por telefone ou pela internet (de acordo com a tecnologia disponível na época em que foram feitas as pesquisas). O intuito principal do estudo: compreender como americanos, de todos os gêneros, veem o papel da mulher na sociedade e, em especial, no mercado de trabalho.
As questões propostas variaram pouco ao longo das décadas e, por isso, puderam ser reunidas no levantamento em três grupos, com o objetivo de compreender se habilidades específicas — como agressividade ou empatia — eram mais associadas a um ou outro sexo. Assim foram divididas as capacidades: de comunhão, em que se encaixariam afeição e compaixão; de ação, que englobariam a ambição e a coragem; e de competência, a exemplo da inteligência e da criatividade. As análises mostraram que, no decorrer de todo o período das entrevistas, as características de comunhão são mais associadas ao sexo feminino, enquanto homens são vistos como mais propensos à ação. Os pesquisadores ponderam que essa “delicadeza” atribuída à mulher está mais vinculada aos trabalhos domésticos e ao cuidado da família, enquanto a agressividade masculina seria um traço próprio da vida profissional competitiva. “Os americanos continuam a considerar os homens como mais gananciosos e, portanto, preparados para cargos de liderança. Isso afasta mulheres de posições de poder”, lamenta a psicóloga americana Alice Eagly, autora principal do estudo e professora da Universidade Northwestern. Apenas cerca de 12% dos entrevistados nas pesquisas relacionam as características de ambição, assertividade e coragem ao universo feminino. E o estereótipo é persistente: esse índice manteve-se estável ao longo das últimas três décadas, período no qual o movimento feminista foi combativo.
O feminismo, no entanto, não foi um tiro na água: no terceiro grupo de habilidades — competência — houve um nítido progresso no modo como as mulheres são consideradas. Hoje, a grande maioria dos americanos não nota distinções entre eles e elas na capacidade para exercer um ofício. Nos anos 50, 40% dos entrevistados acreditavam que, no trabalho, os homens eram superiores às mulheres. Apenas 10% compartilham dessa visão sexista atualmente. “O resultado que encontramos destrói por completo a ideia de que o estereótipo vigente ainda enxerga a mulher como inapta”, diz Alice Eagly.
Se os dados parecem contraditórios, é porque persiste, de fato, uma contradição que atravessa a relação entre os sexos no mercado de trabalho. As mulheres trabalham, mas ainda estão distantes dos centros de comando. Nos Estados Unidos, apenas 39% das vagas de gerência estão em mãos femininas (o número brasileiro é ligeiramente inferior, 38%). E só 23% das mulheres alcançam os altos cargos de diretoria — uma Sheryl Sandberg, diretora de operações do Facebook, ainda é uma avis rara. Vale observar que não há respaldo científico algum para afirmar que homens seriam mais ou menos ambiciosos que as mulheres. O último grande estudo sobre distinções biológicas entre os sexos só descobriu diferenças físicas como massa muscular (leia o quadro).
A pesquisa considera apenas a realidade dos Estados Unidos, mas é seguro afirmar que, no mesmo período, a maioria dos países ocidentais seguiu a mesma trilha de liberação feminina. Até 1962, brasileiras dependiam da autorização do marido para trabalhar e, em caso de separação, não tinham direito de disputar a guarda de filhos. Naquela década, 10% delas tinham emprego, enquanto atualmente a porcentagem está próxima dos 56%. Nos Estados Unidos, 47% do mercado de trabalho é composto do sexo feminino, e já há mais alunas do que alunos concluindo cursos de graduação e pós-graduação — no Brasil, 57% dos matriculados em cursos superiores pertencem ao sexo feminino.
Evidentemente, ainda há muito que mudar. Tome-se a pauta central do movimento Me Too: de acordo com a pesquisa, a realidade do assédio sexual no trabalho melhorou nos Estados Unidos, mas não o bastante. Em 1975, um ano depois de John Wayne propor que o jantar do marido seria a vocação primordial da mulher, 70% das americanas diziam ter sido assediadas. Em 2019, o número baixou para 48% — ainda é um índice escandalosamente alto. No Brasil, uma pesquisa Datafolha de 2017 (ano em que eclodiu o Me Too) mostrava que apenas 15% das brasileiras admitiam já ter sido assediadas no trabalho, mas é preciso cautela na comparação de pesquisas autodeclaratórias. É certo que aqui como nos Estados Unidos, a despeito de todo o progresso, o machismo ainda subsiste, e é uma força social danosa.
Publicado em VEJA de 24 de julho de 2019, edição nº 2644