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A vez dos aloprados no julgamento do STF sobre trama golpista

Supremo transforma em réus os acusados de elaborar planos tresloucados para monitorar adversários, prender congressistas e até assassinar o presidente

Por Marcela Mattos Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 24 abr 2025, 10h24 - Publicado em 24 abr 2025, 06h00

Era junho de 2022, o governo ainda era o de Jair Bolsonaro e um militar experimentava dias de glória. Número 2 da Secretaria-Geral da Presidência, o general da reserva Mário Fernandes ostentava o status de ministro em exercício e, nessa condição, participou do anúncio de uma nova carteira de identidade ao lado do chefe da Casa Civil, do titular da pasta da Economia e de outros figurões da República. Primeiro a discursar diante de um Palácio do Planalto lotado, fez questão de prestar continência ao então presidente antes de assumir o microfone, quando exaltou o “patriotismo” de quem trabalha “pelo Brasil acima de tudo”, e agradeceu a seu “comandante” pela confiança. Bolsonaro observava e sorria.

Quase três anos depois, o general enfrenta seu pior pesadelo. Preso há cinco meses em um batalhão do Exército, ele é peça central no capítulo mais surreal do que já se descobriu até agora sobre uma suposta trama para subverter a democracia. Mário Fernandes é apontado como o artífice de um plano que considerava, entre outras sandices, até a possibilidade de sequestrar e matar o presidente Lula, o vice Geraldo Alckmin e o ministro Alexandre de Moraes com o objetivo de abrir caminho para manter Bolsonaro no poder. Na última terça, 22, o STF tornou o militar e outras cinco pessoas réus por tentativa de golpe de Estado — todos têm em comum o fato de terem conspirado de alguma forma para tentar mudar o resultado das eleições, segundo a investigação.

EMBATE - Plenário do STF e o advogado Marcus Vinícius, que defende o general acusado de tramar contra os ministros: “Meu cliente não é inimigo da Corte”
EMBATE - Plenário do STF e o advogado Marcus Vinícius, que defende o general acusado de tramar contra os ministros: “Meu cliente não é inimigo da Corte” (Gustavo Moreno/STF; Rosinei Coutinho/STF)

No julgamento do chamado segundo núcleo da trama golpista, a Primeira Turma do STF aceitou por unanimidade a denúncia da Procuradoria-Geral da República, chegando até aqui a catorze pessoas formalmente processadas por atentarem contra o estado de direito — ao todo, foram 34 acusados, entre eles o ex-presidente, descrito como o líder máximo da organização criminosa. Em seu voto, o ministro Alexandre de Moraes, relator do caso e um dos alvos do tal plano de assassinato, rebateu as críticas, levantadas pelas defesas, de que estaria acumulando a função de juiz e vítima. “Aqui não se está analisando nenhuma ameaça específica à pessoa física Alexandre de Moraes, não se está analisando denúncia por tentativa de homicídio. O que está se analisando é uma série de fatos encadeados pela denúncia da PGR contra instituição democrática Poder Judiciário, contra os seus membros enquanto integrantes do Poder Judiciário”, afirmou o relator. As investigações da Polícia Federal revelaram que foram elaborados pelos menos dois planos distintos que tinham o magistrado como personagem principal. Um deles, batizado de Operação Copa 2022, envolveu o monitoramento do ministro. O outro, que ganhou o codinome de Punhal Verde Amarelo, previa até a eliminação de Moraes. Um teria relação direta com o outro.

Em sua delação premiada, o tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, afirmou que o monitoramento do ministro se deu a partir de uma determinação direta do ex-presidente — mas o objetivo, segundo ele, seria apenas o de apurar se aliados estariam se reunindo às escondidas com o magistrado. A Procuradoria-Geral da República não acreditou nessa versão. A espionagem seria a primeira etapa de um plano bem mais audacioso que estava descrito num documento apreendido pelos agentes durante as investigações. O material encontrado no computador do general Mário Fernandes previa o acompanhamento dos locais de frequência do ministro do STF, do efetivo de segurança que o protegia e dos carros normalmente utilizados por ele em seus trajetos, inclusive com o detalhamento de blindagem deles. Também havia uma relação de armamentos necessários para a operação: pistolas, fuzis, metralhadora, lança-granadas e até um lançador de foguetes antitanque. Além de Moraes, apareciam outros alvos identificados por codinomes. O presidente Lula, por exemplo, era o “Jeca”. Ao lado do nome dele, havia a anotação sobre a possibilidade de um envenenamento ou uso de remédio que lhe causasse um colapso orgânico. A missão seria executada pelos chamados “kids pretos”, militares das Forças Especiais do Exército.

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MINUTAS - Martins: propostas para decretação de estado de sítio, anulação das eleições, afastamento e até a prisão de ministros do Supremo
MINUTAS - Martins: propostas para decretação de estado de sítio, anulação das eleições, afastamento e até a prisão de ministros do Supremo (Cristiano Mariz/Agência O Globo/.)

Arrastando o ex-presidente para o enredo, a PGR afirmou que o general Mário Fernandes, um “kid preto”, redigiu o plano de assassinato, imprimiu e na sequência o apresentou a Jair Bolsonaro. “A ciência do plano pelo presidente da República e a sua anuência a ele são evidenciadas por diálogos posteriores, comprobatórios de que Jair Bolsonaro acompanhou a evolução do esquema e a possível data de sua execução integral”, afirmou o procurador Paulo Gonet Branco. Essa tese foi rebatida pela defesa do militar. Segundo ela, a minuta, apesar de ter sido impressa com várias cópias, “não foi apresentada a quem quer que seja”. “Meu cliente não é inimigo da Corte. Meu cliente não atentou contra a vida de Vossa Excelência”, disse o criminalista Marcus Vinícius Figueiredo a Alexandre de Moraes.

Um dia antes do julgamento, o ex-­presidente, que segue em recuperação de uma cirurgia no intestino, deu uma entrevista ao SBT na qual disse que é o próprio general Mário quem tem de explicar a origem do documento. “Eu não posso responder por algo que alguém fez e não falou por que fez isso, quem mandou fazer, quem estaria envolvido nesse plano. Logicamente, eu abomino qualquer tentativa de assassinar quem quer que seja”, afirmou Bolsonaro. Será difícil convencer o tribunal a respeito dessa versão. Após o segundo turno das eleições de 2022, Mário Fernandes foi diversas vezes visitar o então presidente no Palácio da Alvorada. Depois de um desses encontros, ele chegou a enviar uma mensagem a Mauro Cid dizendo que conversou com Bolsonaro e que ele disse que “qualquer ação nossa pode acontecer até 31 de dezembro”. Para os investigadores, não há dúvidas de que o então presidente acompanhava as tratativas golpistas.

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CRÍTICAS - Barroso e Moraes: apoio total do tribunal ao ministro relator
CRÍTICAS - Barroso e Moraes: apoio total do tribunal ao ministro relator (Brenno Carvalho/Agência O Globo/.)

Não é a primeira vez, aliás, que um político graúdo tenta se safar de problemas graves alegando falta de conhecimento a respeito do que faziam seus auxiliares mais diretos. Em um caso antológico ocorrido em 2006, a Polícia Federal prendeu militantes do PT no momento em que tentavam comprar um dossiê que supostamente comprometeria o então candidato do PSDB ao governo de São Paulo, José Serra. Com o grupo, os agentes encontraram 1,7 milhão de reais. Havia dois ex-assessores diretos do então presidente da República envolvidos na tramoia, sendo um deles, inclusive, um ativo membro do comitê de reeleição. Na época, tentando se afastar da confusão, Lula disse que não sabia de nada, chamou os petistas de “aloprados” e saiu ileso do escândalo. É mais ou menos o que Bolsonaro tenta fazer agora. A diferença é que as evidências contra o capitão são volumosas no inquérito da PF.

Em paralelo às operações de espionagem contra Alexandre de Moraes, foi levada adiante uma estratégia para dar suporte jurídico à trama golpista. Uma dessas balizas foi entregue pelo ex-assessor de Assuntos Internacionais Filipe Martins a Bolsonaro em dezembro de 2022. Segundo a PGR, o auxiliar palaciano foi responsável por repassar ao então presidente a minuta de um decreto que possibilitava, entre outras coisas, a prisão de autoridades. Durante as investigações, a Polícia Federal apreendeu esboços de medidas que previam a decretação de estado de sítio, a anulação das eleições, a nomeação de um interventor no governo, o afastamento e até a prisão de ministros do STF. Além de Mário Fernandes e Filipe Martins, o STF aceitou a denúncia contra o ex-diretor da Polícia Rodoviária Federal e de mais dois ex-servidores. Eles responderão a processo por cinco crimes, entre os quais organização criminosa e golpe de Estado. Se condenados, podem pegar penas de mais de quarenta anos de cadeia (veja o quadro).

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arte aloprados

O julgamento vai se desenrolando ao mesmo tempo que ganham corpo críticas sobre eventuais abusos da Corte. A revista inglesa The Economist, por exemplo, destacou recentemente as ameaças à democracia brasileira durante os derradeiros dias de mandato de Bolsonaro, classificado como “um agitador de extrema direita”, mas também se dedicou a apontar para um excesso de poder dos juízes, em especial o próprio Moraes. Em nota, Luís Roberto Barroso, presidente do Supremo, rebateu as afirmações, argumentando que o texto corresponde mais à narrativa dos que tentaram o golpe. E defendeu o relator do processo: “O ministro Alexandre de Moraes cumpre com empenho e coragem o seu papel, com o apoio do tribunal, e não individualmente”. O STF ainda vai analisar se aceita ou não denúncia contra outros vinte acusados, o que deve manter o caso ainda sob os holofotes durante muito tempo.

Publicado em VEJA de 25 de abril de 2025, edição nº 2941

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