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Tombo de Lula reacende debate sobre acesso a detalhes da saúde do presidente

A dificuldade está justamente em equilibrar o direito individual, de um lado, e o coletivo, do outro

Por Marcela Mattos Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO , Ricardo Chapola Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 26 out 2024, 08h00

O estado de saúde de um governante desperta a atenção da população, da classe política, da elite econômica e até de líderes mundiais. Quando há a simples suspeita de que um determinado presidente não goza mais de plenas condições para exercer o ofício, as engrenagens do poder e da sociedade se movem rapidamente. No último sábado, 19, depois de retornar de uma viagem a São Paulo, o presidente Lula sofreu um corte na cabeça ao cair em um banheiro do Palácio da Alvorada. De início, os meios oficiais não deram detalhes do ocorrido, e as informações preliminares passaram a circular a partir de relatos de ministros e assessores presidenciais, segundo os quais o mandatário caiu ao se sentar em um banco para cortar as unhas do pé. Sob a pressão de seu corpo, o assento se moveu para frente — num movimento facilitado pelo chão de mármore, altamente escorregadio — enquanto o presidente tombou para trás e bateu a cabeça em uma quina. Com um ferimento acima da nuca, Lula foi levado às pressas a um hospital particular, onde se submeteu a exames para avaliar a gravidade da lesão. No dia seguinte, voltou a ser examinado, e a junta médica decidiu mantê-lo em observação.

RECADO DADO - Lula com auxiliares: reunião para mostrar que estava tudo bem
RECADO DADO - Lula com auxiliares: reunião para mostrar que estava tudo bem (Ricardo Stuckert/PR)

Todos esses procedimentos médicos ocorreram sem que fosse dada uma satisfação transparente à sociedade e só se tornaram públicos posteriormente porque o mandatário teve de anunciar que se ausentaria de sua principal agenda programada para a semana. Faltando menos de quatro horas para a decolagem de Lula rumo à reunião da Cúpula do Brics, na Rússia, a Secretaria de Comunicação Social da Presidência divulgou uma nota informando apenas que, por orientação médica e devido a um “impedimento temporário para viagens de avião de longa duração”, a ida estava cancelada. Não havia no texto menção ao acidente doméstico. Coube ao hospital e aos médicos divulgar mais tarde, sem muitos detalhes, que o presidente sofrera uma queda que lhe rendeu um pequeno traumatismo no crânio, além de focos de hemorragia e cinco pontos na cabeça.

Apesar do susto, Lula está muito bem. Foi esse o recado dado pelos lacônicos boletins médicos e por ele mesmo nos dias que sucederam ao acidente. Na segunda-feira 21, uma imagem do presidente foi divulgada em suas redes sociais. No registro, ele aparece gesticulando durante uma reunião, realizada na residência oficial, com o ministro de Relações Institucionais, Alexandre Padilha, e o assessor especial Celso Amorim. Depois, um candidato a prefeito publicou um áudio de uma conversa que teve com o presidente. No viva-voz, Lula faz perguntas descontraídas sobre a disputa municipal e afirma que, apesar de grave, o acidente não afetou nenhuma área delicada de sua cabeça. Com humor, o presidente encerrou a ligação fazendo troça: “Eu preciso sobreviver para ir à sua posse”. A agenda do petista ainda teve reuniões com ministros e, na quarta-feira, ele participou por videoconferência da reunião da Cúpula do Brics, fazendo um pronunciamento de sete minutos no qual voltou a defender a taxação dos super-ricos e uma negociação de paz entre Ucrânia e Rússia. A distância, neste caso, lhe foi favorável para evitar constrangimentos diplomáticos.

PROVIDENCIAL - Dilma e Putin: tombo fez Lula escapar de aparecer em fotos ao lado de ditadores na reunião do Brics
PROVIDENCIAL - Dilma e Putin: tombo fez Lula escapar de aparecer em fotos ao lado de ditadores na reunião do Brics (Alexander Nemenov/POOL/AFP)
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O encontro teve como anfitrião o presidente russo, Vladimir Putin, que tentou dar uma demonstração de prestígio em meio aos questionamentos sobre sua lamentável ofensiva militar na Ucrânia. A reunião ainda contou com a presença-surpresa de Nicolás Maduro, o ditador da Venezuela, de quem Lula, outrora aliado, agora tenta manter certa distância. Se o tombo acabou ajudando o presidente a não passar por saias justas lá fora, por aqui atrapalhou sua participação na reta final da campanha do aliado Guilherme Boulos à prefeitura de São Paulo e suscitou uma série de teorias conspiratórias — todas falsas, diga-se — sobre sua saúde. O manto da “recomendação médica” mantinha no ar esse tipo de dúvida, alimentada até certo momento pela falta de esclarecimentos oficiais e mais detalhados sobre o estado do mandatário. A situação é até compreensível. Poucas informações são tão particulares e protegidas pelo direito à privacidade quanto a saúde de qualquer cidadão. Mas quando esse cidadão se torna uma autoridade pública, ainda mais com a responsabilidade de governar uma nação, a confusão aumenta.

A dificuldade está justamente em equilibrar o direito individual, de um lado, e o coletivo, do outro. Especialistas consultados por VEJA reconhecem que essa não é uma tarefa fácil. Uma corrente alega que, se uma doença pode incapacitar um mandatário, é dever dos órgãos oficiais prestar o máximo de detalhes à sociedade. “A população precisa saber se aquela autoridade está em condições de exercer sua função. Se a situação fosse levada ao limite, teríamos circunstâncias em que um governante poderia omitir um dado dessa natureza e seguir no cargo sem que fosse ele, de fato, que estivesse tomando as decisões. Não seria democrático. O interesse público sempre tem de ser preponderante, mesmo que exista o direito à privacidade”, afirma o advogado Bruno Morassutti, membro do conselho de transparência da Controladoria-Geral da União (CGU) e cofundador da ONG Fiquem Sabendo, especializada em acesso a informações públicas. Já Robert Gregory Michener, professor da Fundação Getulio Vargas (FGV) especializado em transparência pública, reforça que nem todos os documentos médicos têm de ser divulgados, principalmente quando não dizem respeito a uma doença incapacitante ou grave. “O princípio da necessidade de saber o que está acontecendo precisa ser levado em consideração, mas isso não quer dizer que todos os detalhes precisam ser divulgados, justamente para não afetar a intimidade ou a honra do governante.”

ENCENAÇÃO - Tancredo Neves: tentativa de esconder a gravidade da doença do ex-presidente, que morreu antes da posse
ENCENAÇÃO - Tancredo Neves: tentativa de esconder a gravidade da doença do ex-presidente, que morreu antes da posse (Gervasio Baptista/EBN/.)
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O Brasil não é um neófito nesse assunto. Primeiro presidente da República eleito após o fim da ditadura militar, em votação indireta realizada pelo Congresso, Tancredo Neves morreu antes de tomar posse. Até hoje, há a suspeita de que auxiliares dele esconderam a gravidade de sua doença e alimentaram a falsa impressão de que ele se recuperaria, o que não ocorreu. Em 2020, foi a vez de Jair Bolsonaro assumir o protagonismo no debate. No auge da epidemia de covid-19, os testes do então presidente para a detecção da doença não foram revelados. Em resposta, houve uma ação ao Supremo Tribunal Federal (STF) para obrigá-lo a tornar público o resultado. Na época, diversos membros da comitiva presidencial haviam se infectado durante uma viagem, e Bolsonaro levava uma vida normal, garantindo que seu diagnóstico havia sido negativo. Ao se recusar a apresentar o laudo, o capitão alegou que não fez o exame na condição de agente público e que tinha direito à intimidade e à privacidade. Em primeira instância, a Justiça entendeu que as informações eram de interesse público e “relevantes para a história do país”.

Quando o caso chegou à última instância, o então presidente apresentou os documentos que, de fato, indicavam que ele não se contaminara. “É uma questão eterna, e sempre terá de ser levada ao Judiciário, que é quem dá a última palavra. Estamos falando em última palavra porque reconhecemos que a letra escrita da lei muitas vezes não consegue dirimir todas as dúvidas que ela mesma gera”, afirma Jorge Hage, chefe da CGU quando a Lei de Acesso à Informação (LAI) foi criada. O tema está em voga na eleição presidencial americana. O atual presidente, Joe Biden, 81 anos, foi retirado da corrida após uma participação desastrosa, com lentidão nas respostas e uma certa confusão mental, no debate promovido pela CNN. No último dia 12, a candidata Kamala Harris, de 60 anos de idade, divulgou um relatório médico que apontava um “excelente” quadro de saúde, além de “resiliência física e mental necessária para desempenhar com sucesso as funções da Presidência”. Na sequência, ela desafiou o adversário, Donald Trump, dezoito anos mais velho, a fazer o mesmo gesto. Ele não acatou o pedido e ainda rebateu com ironia ao dizer que a vice “está morrendo de vontade de ver meu colesterol”.

COVID-19 - Bolsonaro: Justiça disse que informações eram de interesse público
COVID-19 - Bolsonaro: Justiça disse que informações eram de interesse público (Andressa Anholete/Getty Images)
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Os desdobramentos políticos desse assunto são evidentes. Em seu terceiro mandato presidencial, Lula, que completa 79 anos em 27 de outubro, tem o direito de concorrer à reeleição em 2026. Até agora, ele não disse se disputará ou não, mas ministros próximos ao presidente afirmam que o chefe só não estará nas urnas caso enfrente um grave problema de saúde. Felizmente, nada indica que um contratempo dessa magnitude esteja no horizonte. Infelizmente, tudo indica que, se algo assim ocorrer, a falta de uma definição sobre os limites entre privacidade, transparência e acesso à informação pode impedir que o distinto público seja devidamente informado. O episódio da queda manteve um padrão que, diz o cardiologista Roberto Kalil, é uma demanda antiga do presidente. “Cuido dele há mais de trinta anos, e ele gosta que a imprensa saiba o que está acontecendo”, afirmou o médico. Não é bem assim. VEJA perguntou à Secretária de Comunicação da Presidência sobre o tratamento que o presidente recebeu após a queda no banheiro e as próximas avaliações médicas programadas. Não houve resposta. Também foi solicitada a lista de exames médicos realizados pelo presidente desde o início do mandato, o resultado deles e o acesso aos laudos. De novo, não houve resposta. Já a CGU declarou que os detalhes sobre a saúde do presidente são protegidos pela Lei de Acesso à Informação, que impõe restrições à divulgação de dados referentes à intimidade e à vida privada, mas permite exceções em casos de interesse público. Decisões sobre o assunto, conforme a CGU, serão tomadas caso a caso — e , pelo jeito, pesando seus efeitos políticos. Que o presidente então goze de boa saúde e que nada disso seja necessário.

Com reportagem de Paula Felix

Publicado em VEJA de 25 de outubro de 2024, edição nº 2916

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