Manaus é uma tragédia dentro de outra tragédia. Mais de cinquenta pacientes, grande parte deles internada com Covid-19, morreram nos últimos dias por falta de oxigênio — o número tende a crescer à medida que os cartórios contabilizam os atestados de óbito por asfixia e síndrome respiratória. Em mais um momento de insensibilidade, Jair Bolsonaro declarou que fez o que era possível. O ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, criticado hoje até dentro governo (veja reportagem na pág. 22), tentou pôr um ponto-final na segunda 18, dizendo que a situação estava “equalizada”. Negativo. Basta percorrer a rede de saúde local para perceber que foi um diagnóstico apressado e equivocado.
No Hospital Delphina Aziz, por exemplo, boa parte dos pacientes continua morrendo na sala de enfermaria. “Não há leitos de UTI e, mesmo se tivesse, não há oxigênio”, descreve um enfermeiro. Os médicos optam por salvar pacientes com mais chances de recuperação. Enquanto parte da rede privada está fechada para novas internações, alguns doentes começaram a pedir para “morrer em casa”. Todas as madrugadas, uma fila quilométrica se forma na frente de empresas de gás com familiares desesperados para encher cilindros de oxigênio. Além desse tipo de estabelecimento, só se vê aglomerações em funerárias, cemitérios e unidades de saúde desde que foi decretado toque de recolher das 19 horas às 6 horas. O governo federal, o estadual, empresas privadas, artistas e o governo da Venezuela se mobilizaram para a entrega de centenas de toneladas de cilindros e tanques de oxigênio, e já foi iniciada a instalação de usinas de oxigênio nos hospitais mais críticos. Mas o drama persiste. “A situação é assustadora e sem precedentes”, afirmou a VEJA o governador Wilson Lima (PSC). “Não descarto um agravamento da crise.”
Se na capital a situação está péssima, no interior o cenário também é drástico. Com a produção local sendo sugada para suprir a demanda de Manaus, municípios menores começaram a ter problemas no fornecimento de oxigênio. Em Coari, sete pessoas morreram por falta do produto na terça 19. O desabastecimento começou a atingir estados vizinhos. Em Faro, no Pará, o oxigênio acabou no mesmo dia e uma pessoa morreu em decorrência disso. Seis pacientes foram transferidos para cidades próximas. A alternativa foi buscar vinte cilindros em Santarém, em um trajeto de dez horas, boa parte percorrida de lancha no rio. “Não tem oxigênio em Manaus, não tem em Parintins, faltou em todas”, diz o prefeito, Paulo Carvalho (PSD). O governo paraense afirma que o problema foi de planejamento da gestão municipal, que compra o produto de Manaus. “Se a prefeitura não pede oxigênio, óbvio que vai faltar”, diz o governador Helder Barbalho (MDB).
Outra prova cabal de que a situação está longe de ser solucionada são as remoções de pacientes. Entre os dias 15 e 20, sete estados e o Distrito Federal receberam do Amazonas 161 pessoas com Covid-19. As transferências são feitas com cuidado redobrado, diante de um temor: a disseminação de uma nova variante do coronavírus. “Calculamos que ela esteja associada a mais da metade dos casos de Covid-19 hoje no Amazonas e, com certeza, já está espalhada por outros estados”, diz Marcus Lacerda, infectologista da Fiocruz. A linhagem teve duas mutações importantes na proteína Spike, responsável pela entrada do coronavírus nas células — as variantes do Reino Unido e da África do Sul tiveram só uma. Diante do risco, os vizinhos do Amazonas aumentaram os cuidados. Na semana passada, o Pará suspendeu o transporte fluvial com o estado e ampliou a fiscalização de fronteiras por terra. “Temos embarcações e helicóptero monitorando para evitar uma migração populacional descontrolada que faça com que o vírus se espalhe”, diz Barbalho, que também pediu à Infraero que intensifique a fiscalização sobre passageiros vindos de Manaus. Em Roraima, o governo implementou barreiras sanitárias na BR-174, que liga Boa Vista à capital amazonense.
Na atual crise de oxigênio, não foi por falta de aviso que a situação chegou a um ponto crítico. O secretário de Saúde do Amazonas, Marcellus Campêllo, descreveu da seguinte forma a gênese da tragédia: “Foi como se tivéssemos levado um xeque-mate da pandemia”. No dia 7 de janeiro, ao ser avisado da situação pela White Martins, a principal fornecedora de oxigênio, ele ligou para Pazuello, que lhe pediu para acionar o Comando Militar da Amazônia. Obtido por VEJA, um ofício enviado no mesmo dia ao general Teóphilo de Oliveira fala em “iminência de esgotamento” e “urgência de pedido” para entrega de oxigênio em “até 24 horas”. A mobilização foi insuficiente, pois a demanda continuou crescendo em ritmo altíssimo. Na madrugada do dia 13 veio o aviso de colapso iminente da White Martins às autoridades. “Ficamos sabendo que, dentro de algumas horas, não teríamos oxigênio”, relata Campêllo.
Como era de se esperar, uma tragédia desse porte passou a gerar uma série de ações na Justiça. A principal delas é um inquérito civil por improbidade administrativa aberto pelo Ministério Público Federal. “Estamos apurando as responsabilidades”, diz o procurador Gladston Viana. Em Brasília, reservadamente, membros do STF dizem que o colapso em Manaus pode levar à responsabilização criminal de Pazuello — dois ministros pediram ao procurador-geral da República, Augusto Aras, que tome medidas mais enérgicas contra ele. Escolhido por Bolsonaro, Aras resiste a aceitar a sugestão. De forma protocolar, repete que a PGR já instaurou “procedimentos”, que não passam, por enquanto, de meras formalidades. “Todas as instituições serão chamadas a prestar contas sobre a pandemia. Todos seremos chamados à responsabilidade, mas alguns terão cumprido de maneira insatisfatória seus deveres e obrigações”, afirmou a VEJA o ministro Gilmar Mendes. No STF, a atuação de Pazuello é considerada desastrosa, entre outras razões por se empenhar na distribuição e prescrição de medicamentos sem eficácia contra a doença, como a cloroquina. Em meio a tudo isso, o ministro oficializou, na quarta 20, a nomeação do marqueteiro Marcos Eraldo Arnoud como assessor especial. Pelo andar da carruagem, Arnoud terá um trabalho árduo para melhorar a imagem de Pazuello, o “expert em logística”. Enquanto Arnoud cuida da missão quase impossível, o Brasil chora por Manaus e se preocupa com a maneira como os problemas de lá podem se espalhar. Definitivamente, a situação não está “equalizada”.
Com reportagem de Laryssa Borges
Publicado em VEJA de 27 de janeiro de 2021, edição nº 2722