Aposta de risco do PSDB, Datena embola disputa em São Paulo
Apresentador é um estranho no ninho da legenda e tem um perfil muito distinto do DNA aristocrático da sigla
Tendo como berço a cidade de São Paulo, o PSDB surgiu na cena política com grandes ambições e alçou voo pilotado por uma nata de lideranças intelectuais que formaram o partido a partir de uma costela do antigo PMDB, como o sociólogo, e então futuro presidente, Fernando Henrique Cardoso. Depois de comandar o país por dois mandatos e o estado mais poderoso do país por 28 anos, derrotas sucessivas iniciaram a fase de declínio acelerado. Cada vez mais fraco em sua própria casa, tenta agora retomar o protagonismo na capital paulista com o popular apresentador televisivo José Luiz Datena, um outsider que é um estranho no ninho da legenda e tem um perfil muito distinto do DNA aristocrático da sigla. No final do mês passado, a candidatura dele foi oficializada na convenção na qual a ala de correligionários contrária à decisão recebeu Datena com xingamentos, em verdadeiro clima de briga de rua.
Foi uma decisão partidária de cima para baixo. Apesar do temperamento explosivo e inconstante do apresentador, a cúpula tucana bancou a aposta de risco, baseada nas grandes chances de êxito do jornalista graças à fama da TV. Nos últimos anos, Datena conquistou boa audiência no ar com programas de apelo policialesco, muitas vezes esbarrando no sensacionalismo, a exemplo do antigo Cidade Alerta. Sem nunca ter se candidatado a cargos públicos, já transitou por um total de onze partidos: do PT — sigla à qual foi filiado por 23 anos — ao, agora, PSDB, passando pelo extinto PSL de Jair Bolsonaro e pelo PSC, legenda na qual ensaiou uma candidatura ao Senado em 2022. O apresentador, aliás, notabilizou-se por prometer entrar como cabeça de chapa em várias outras campanhas, mas sempre desistindo, de forma espalhafatosa, com acusações de traição aos políticos. Em 2020, não embarcou no posto de vice de Bruno Covas. Depois disso, anunciou que cogitaria concorrer ao Palácio do Planalto no pleito seguinte.
Num primeiro momento, a despeito da briga na convenção e do esforço dos tucanos dissidentes para tirá-lo do páreo, a aposta em Datena parece promissora. Em pesquisa divulgada pela Quaest na última terça, 30, o apresentador aparece com 19%, numericamente empatado com o deputado federal Guilherme Boulos, do PSOL, e apenas um ponto abaixo de Ricardo Nunes, o prefeito do MDB, que tenta a reeleição. Como a margem de erro da sondagem é de 3 pontos, os três estariam tecnicamente empatados neste momento. Assim como em seu dia a dia na TV, Datena tem centrado o discurso na segurança pública — embora essa não seja exatamente uma atribuição do prefeito. Defende, por exemplo, que se “aparelhe com equipamentos e armas” a Guarda Civil Metropolitana, com aumento salarial e de efetivo. Também prega uma atuação coordenada na cracolândia, com integração entre os poderes do Executivo estadual e municipal e o Judiciário. Em declarações recentes, afirmou ainda que irá se preocupar com saúde, trabalho e limpeza.
Na maior parte das vezes, suas críticas mais pesadas são disparadas na direção de Nunes, classificado pelo apresentador como o “pior prefeito da história de São Paulo”. Isso não significa que a metralhadora do apresentador vai ser direcionada apenas ao prefeito. Ao comentar por meio de uma nota à imprensa o resultado da pesquisa Quaest, bateu nos dois rivais: chamou Boulos e Nunes de “marionetes” de Lula e Bolsonaro, em referência aos respectivos e maiores cabos eleitorais desses dois políticos.
Por essas e outras, o comportamento imprevisível do jornalista não deixa apenas os fiadores da candidatura no PSDB segurando o fôlego, pois vira e mexe Datena declara que pode abandonar tudo se sentir algum cheiro de traição. O impacto eleitoral de sua entrada no páreo não preocupa apenas Nunes, dentro da avaliação de que o discurso do apresentador pode dividir ainda mais os votos do centro e da direita, podendo até mesmo tirar o prefeito do segundo turno. Uma outra candidatura, a do coach Pablo Marçal, que se vende como o verdadeiro nome do bolsonarismo, já vem provocando esse efeito de desagregação à direita. Na Quaest, ele aparece com 12%. Mas até Boulos, favorecido pela entrada de um concorrente que pode tirar do segundo turno o atual prefeito, tem com que se preocupar. Ironicamente, apesar do discurso de esquerda voltado para os mais humildes, o psolista tem mais intenções de votos entre os mais ricos, até o momento. Melhorar esse quadro é essencial para a pretensão dele de vitória. Segundo a Quaest, no entanto, Datena é o que se sai melhor hoje entre os eleitores paulistanos com renda de até dois salários mínimos: tem nessa faixa 28%, contra 21% de Nunes e 13% de Boulos.
O apresentador entrou na corrida bancado pelos caciques que hoje dominam o PSDB: o deputado federal Aécio Neves, o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, e o presidente Marconi Perillo. José Aníbal, candidato a vice na chapa de Datena, também compõe o grupo: é ele o responsável por ajudar a articular o plano de governo que está sendo elaborado, além de inserir o colega nos círculos da política. “Essa candidatura do PSDB é um esforço de construir uma alternativa que não seja nem Lula, nem Bolsonaro. Porque não nos identificamos nem com um e nem com o outro, assim como 40% da população brasileira”, diz Aécio Neves, assinalando para uma estratégia que já vem sendo empunhada pela campanha de Datena. Dentro desse mesmo raciocínio, o deputado federal prevê que Datena irá roubar votos tanto de Nunes quanto de Boulos. “Ele é um candidato independente, que vai chegar ao segundo turno trabalhando essa margem de eleitores que não quer mais a polarização”, afirma Perillo, pregando uma espécie de versão municipal da chamada terceira via.
Mesmo antes das brigas na convenção, a entrada de Datena na sigla já havia deflagrado uma crise interna na ala paulistana do partido. Quando ainda se falava da filiação, a insistência em uma candidatura própria tucana, ao invés do apoio a Nunes, foi considerada o estopim para a debandada dos vereadores do PSDB na capital paulista — a sigla, que tinha a maior bancada, ao lado do PT, ficou sem nenhum representante na Câmara Municipal após a janela partidária deste ano. Interferências do diretório nacional na direção local também desagradaram correligionários — os mesmos que se digladiaram com Datena na convenção. A filiação do jornalista motivou até a saída do ex-ministro e tucano histórico Aloysio Nunes, após 27 anos na legenda. Ele classificou a movimentação como “manobra política oportunista”. “O Datena é uma celebridade televisiva. Quer candidatura própria? Precisa ser alguém com a mínima vinculação com a política”, declarou em entrevista à GloboNews. Parte dos especialistas concorda com essa visão. “O PSDB hoje é um agrupamento de políticos fazendo de tudo para se manter”, avalia Carlos Ranulfo Melo, doutor em ciência política.
O jornalista licenciou-se da Band no final de junho, emissora pela qual apresentava o Brasil Urgente. Recentemente, por culpa de Datena, a empresa foi condenada a pagar uma multa de 4,7 milhões de reais a uma companhia aérea. O motivo: em 2009, ele teve problemas com um voo e descascou a empresa ao vivo. Na decisão, o juiz destacou o “destempero” e a “truculência” do jornalista. O comportamento mercurial será agora submetido à prova de fogo de uma campanha que promete ser duríssima. Dentro e fora do ar, Datena é sempre expectativa de grandes emoções.
Publicado em VEJA de 2 de agosto de 2024, edição nº 2904