Quando os xavantes receberam a garantia de que seriam donos da Terra Indígena Marãiwatsédé, por uma sentença do STF em 2012, a disputa em torno de seu território já era considerada um dos mais graves conflitos fundiários do país. Durante vinte anos, o local havia sido alvo de invasões por milhares de produtores rurais. Foi nesse cenário que o delegado Marcelo Augusto Xavier acabou sendo designado para comandar a Polícia Federal em Barra do Garças (MT), responsável pela área onde está a reserva. Sete anos depois, em 2019, ele foi alçado ao posto de comandante da Funai e em pouco tempo se transformou em um símbolo da política do presidente Jair Bolsonaro (PL) para a questão indígena, marcada pelas críticas às demarcações e pela fragilização da estrutura do órgão.
Agora, Xavier tornou-se um personagem enredado em uma série de graves suspeitas. Um áudio que veio a público na semana passada mostrou Xavier em uma conversa comprometedora com um funcionário acusado de liderar esquema de arrendamento ilegal de terras a produtores rurais em Marãiwatsédé. Três militares que trabalhavam na Funai seriam presos sob a acusação de receber dinheiro dos arrendatários, segundo a PF e o Ministério Público Federal. No processo está a gravação na qual Xavier fala com um dos suspeitos de envolvimento no caso, o ex-fuzileiro naval Jussielson Gonçalves Silva, coordenador regional da fundação. Na conversa em questão, Jussielson mostra-se preocupado com pedidos de informação da PF. “Pode ficar tranquilo aí, que você tem toda a sustentação aqui”, responde o presidente da Funai.
Não fica claro a que tipo de garantia Xavier estava se referindo. Jussielson foi preso um mês depois, assim como outros dois militares que trabalhavam no órgão. Relatório da PF obtido por VEJA mostra que funcionários da Funai falavam sobre a intenção de legalizar as invasões por até quinze anos, via um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC). A conversa gravada pela PF sugere que Xavier estava a par da maracutaia. Como o Estatuto do Índio proíbe de forma taxativa qualquer tipo de arrendamento de terra indígena, o entendimento da PF é que o TAC jamais se aplicaria a esse caso.
O presidente da Funai, que por ora não é investigado, nega irregularidade, mas ficou pressionado. Ele enviou um ofício exigindo a abertura de inquérito sobre ele e que, caso a PF opte por não abrir o processo, que apresente uma justificativa para deixar de fazê-lo “sob pena de prevaricação”. A nota também sugere que os documentos enviados pela PF à Justiça Federal teriam sido utilizados de forma descontextualizada para prejudicá-lo.
As suspeitas que o caso levanta sobre Xavier não são baseadas apenas na gravação feita pela PF. Documentos da investigação em curso também mostram o episódio da recente nomeação para um cargo que o presidente da Funai fez a favor de Thaiana Ribeiro Viana, casada com o PM Gerard Maximiliano, apontado como braço direito de Jussielson. Despachante de armas, ela foi designada para um posto comissionado da Funai no Xingu, a 120 quilômetros de onde morava. A PF recebeu comprovantes de transferências por Pix que somavam 50 000 reais da filha de um dos arrendatários para a conta de Thaiana, com o termo “arrendamento” na descrição do depósito. O fazendeiro diz que fez o pagamento para continuar o arrendamento ilegal da área. Maximiliano negou em depoimento ter recebido dinheiro, mas disse que não tinha certeza do motivo da transferência à esposa.
Os indícios de favorecimento a invasões ilegais de terras indígenas precedem a chegada do atual presidente da Funai ao cargo. Em 2013, o procurador da República Wilson Rocha Fernandes Assis solicitou uma investigação dos fazendeiros com escutas telefônicas, mas o então delegado Xavier foi contra, o que obrigou o MPF a pedir a interceptação diretamente à Justiça. “Em um áudio aparecem referências de que ele seria uma pessoa que estava do lado dos fazendeiros”, diz Assis. O áudio foi enviado à Superintendência da PF e Xavier foi afastado. Causa espanto, portanto, alguém com esse currículo ter chegado ao comando da Funai.
Se não bastassem as suspeitas do passado, o imbróglio recente é mais um ponto negativo na atuação de Xavier, cuja gestão foi classificada de “anti-indígena” em um dossiê da entidade Indigenistas Associados (INA), de junho. O documento aponta perseguição a servidores, sucateamento da fiscalização e o aparelhamento da fundação — das 39 coordenações, apenas duas são ocupadas por funcionários de carreira e dezessete por militares como Jussielson. O inferno astral de Xavier, que começou com os assassinatos do indigenista brasileiro Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips, em junho, e o levou ao constrangimento de ter de abandonar um mês depois um evento indígena em Madri aos gritos de “miliciano”, parece ainda longe do fim.
Publicado em VEJA de 7 de setembro de 2022, edição nº 2805