Ascensão e queda de Bolsonaro: a trajetória do político que testou o limite das instituições
A democracia, com seus freios e contrapesos, sempre tirou o capitão do sério

Jair Bolsonaro nunca teve apreço pela democracia. Militar reformado, ele sempre defendeu a ditadura durante quase quarenta anos de carreira política. Na década de 1990, quando já exibia seus pendores autoritários, mas era considerado inofensivo, o capitão disse numa entrevista que, se fosse eleito presidente da República, daria um golpe imediatamente, porque o Brasil não mudaria de verdade, segundo ele, por meio do voto popular. “Só vai mudar, infelizmente, no dia em que partir para uma guerra civil aqui dentro, fazendo o trabalho que o regime militar não fez, matando uns 30 000”, declarou, antecipando um roteiro que, décadas mais tarde, levaria seus apoiadores mais radicais a invadir e depredar as sedes dos Três Poderes, em Brasília, em 8 de janeiro de 2023. Na votação do impeachment de Dilma Rousseff, Bolsonaro deu um passo adiante e — além da ode ao regime de exceção instalado em 1964, que só foi encerrado em 1985 — elogiou um notório torturador da ditadura ao defender a cassação do mandato da petista, ela mesma vítima de tortura. “Perderam em 1964. Perderam agora em 2016”, afirmou na tribuna da Câmara. E arrematou, em indisfarçável provocação: “Pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff”.
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Apesar dessas declarações, Jair Bolsonaro manteve uma relação conflituosa com o Exército, usado por ele como trampolim para cargos eletivos e instrumento de pressão em busca de objetivos pessoais, inclusive na fracassada tentativa de aprovação do voto impresso. O capitão foi um “mau militar”, conforme avaliação do general Ernesto Geisel, um dos presidentes no período da ditadura. A definição tem lastro na realidade. Em 1986, desrespeitando a disciplina e a hierarquia inerentes à função, Bolsonaro escreveu um artigo em VEJA reclamando dos baixos salários pagos à tropa. No ano seguinte, a revista mostrou que ele elaborou um plano para explodir bombas no Rio de Janeiro a fim de pressionar o comando das Forças Armadas a conseguir o aumento dos vencimentos de seus integrantes. Diante da repercussão da notícia, Bolsonaro negou ter planejado a ação e desenhado de próprio punho um croqui, publicado na reportagem, no qual detalhou em que ponto de um aqueduto do Rio seria instalado um explosivo. Ele acabou desmentido por uma investigação interna, foi para a reserva e só admitiu o ato de “indisciplina” e “deslealdade” muito tempo depois, quando já tinha conquistado mandatos eletivos a partir de uma pauta corporativista herdada dos anos na caserna. Já a ideia da bomba reapareceu em dezembro de 2022, quando um de seus apoiadores tentou explodir um caminhão de combustível no aeroporto de Brasília. Só não conseguiu porque o artefato falhou.
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Pode até parecer contraditório, mas Jair Bolsonaro também nunca teve apreço pela atividade parlamentar. Depois de eleito vereador, ele conquistou sete mandatos consecutivos de deputado federal. Em quase trinta anos na Câmara dos Deputados, teve uma atuação entre discreta e irrelevante. Os mandatos nunca foram encarados como um meio para tentar mudanças estruturais no país, mas um fim, uma forma de sustento. Ou um negócio de família, tanto que, colhendo dividendos de seu capital eleitoral, o ex-presidente elegeu seus quatro filhos homens e caminha para lançar nas urnas a esposa, a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro. Na maior parte da carreira política, Bolsonaro foi mais um na multidão do baixo clero. Ele só passou a chamar atenção, especialmente das redes sociais, quando protagonizou uma sucessão de polêmicas, que lhe renderam o apelido de mito e pavimentaram seu caminho para a Presidência da República, principalmente depois que um desequilibrado tentou matá-lo com uma facada.

Na campanha, Bolsonaro externou seu desdém em relação ao Congresso. O general Augusto Heleno, corréu na trama golpista, chegou a comparar o Centrão, bloco que controla as votações na Câmara, a um grupo de ladrões. A promessa do suposto outsider era implodir o establishment. O problema é que o ex-presidente nunca foi contra o sistema. No Palácio do Planalto, ele acumulou toda sorte de atritos. Durante a pandemia de covid-19, sabotou recomendações sanitárias, negligenciou a compra de vacinas e desdenhou das mortes provocadas pela doença, que chegaram a 700 000 no Brasil. “Não sou coveiro”, bradou no ápice da tragédia humanitária. Ameaçado por pedidos de impeachment, entregou o governo ao Centrão, bloco que ele dizia representar a nefasta velha política — e que prometia combater. Foi uma forma de se blindar. Florescia, assim, o notório orçamento secreto, que movimentou 65 bilhões de reais em recursos do Orçamento da União e pacificou a relação entre o capitão e os parlamentares. Relação com a qual ele conta agora para — caso seja condenado pelo Supremo Tribunal Federal por tentativa de golpe — ser anistiado por meio de um projeto aprovado pelo parlamento. O recurso à anistia é uma das últimas cartadas de um político que, se conseguiu se entender com o Congresso cedendo poder em troca da sobrevivência, jamais se entendeu com as instituições, porque, como se sabe, não aceitou respeitá-las.
A democracia, com seus freios e contrapesos, sempre tirou Jair Bolsonaro do sério. Em quatro anos de mandato, ele adotou a tensão permanente como estratégia de atuação política, atacou decisões do Supremo, colocou em xeque a credibilidade da Justiça Eleitoral e contestou a segurança e a confiabilidade das urnas eletrônicas. Além disso, disseminou a versão de que haveria uma conspiração entre a cúpula do Judiciário e a esquerda para derrubá-lo e devolver o poder ao ex-presidente Lula. O capitão tentou se apresentar como vítima e não como líder de uma trama golpista. Em vez de buscar pontes de diálogo, preferiu dinamitá-las. Apostando numa retórica beligerante, ameaçou descumprir decisões do STF, xingou magistrados e deixou claro que não aceitaria outro resultado eleitoral em 2022 que não fosse a sua reeleição. Qualquer coisa diferente disso seria fruto de fraude nas urnas eletrônicas, algo que ele sempre tentou, mas nunca conseguiu comprovar.

Pintado para a guerra, chegou a proclamar em uma manifestação de 7 de Setembro: “Só saio preso, morto ou com a vitória. Quero dizer aos canalhas que nunca serei preso”. Com o avanço do processo, a possibilidade de prisão ficava cada dia mais próxima. Numa tentativa de afastá-la, a família Bolsonaro recorreu a uma medida extrema. O deputado federal Eduardo Bolsonaro se autoexilou nos Estados Unidos para conspirar contra a economia nacional e o Supremo. O Zero Três conseguiu que o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, anunciasse um tarifaço de 50% às exportações brasileiras como forma de, entre outros objetivos, pressionar o STF a suspender “imediatamente” o processo contra o capitão. Na sequência, a gestão Trump puniu Moraes com a temida Lei Magnitsky e, enquanto eram proferidos os primeiros votos pela condenação de Bolsonaro, a Casa Branca informou que os Estados Unidos seriam capazes de usar seu poderio militar para defender a liberdade de expressão em outros países, inclusive no Brasil. Na campanha pela anistia do pai, os filhos já lembraram do arsenal americano. O senador Flávio, o Zero Um, citou até a bomba atômica. A prioridade, portanto, não é a pátria, mas a família. Nunca foram os personagens da infantaria bolsonarista do 8 de Janeiro, como a Débora do Batom. O objetivo sempre foi tentar livrar Jair Bolsonaro de uma condenação que pode encerrar a carreira de um dos políticos mais controversos da história brasileira.
Publicado em VEJA de 12 de setembro de 2025, edição nº 2961