Bolsonaro vai enfrentar onda de processos de rivais por inelegibilidade
Apesar de quase não ter mais seu nome mencionado em público pelo presidente eleito e pela equipe de transição, o ex-capitão continua na mira do PT
Depois da vitória na eleição, Lula deixou de lado a polarização com Jair Bolsonaro, passou a trabalhar na montagem do futuro governo, abriu negociações com a cúpula do Congresso e até viajou para uma conferência da ONU no Egito a fim de reposicionar o Brasil no debate mundial sobre meio ambiente. Essas ações tiveram um objetivo em comum: fortalecer a ideia de que ele tomará posse em 1º de janeiro, que eventuais aspirações golpistas não prosperarão e que a gestão Bolsonaro é página virada. Apesar de quase não ter mais seu nome mencionado em público pelo presidente eleito e pela equipe de transição, o ex-capitão continua na mira do PT. Nas últimas semanas, o partido escalou advogados, técnicos e colaboradores para recolher material que será usado para fustigar o atual mandatário. A ideia é apresentar novas ações judiciais para que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) considere declarar Bolsonaro inelegível por oito anos. Mesmo que o julgamento não ocorra, as ações podem servir como fator de pressão, forçando-o a parar de questionar a legitimidade do processo eleitoral e do próprio mandato de Lula, sob pena de sofrer punição.
Conhecido pelo baixo apetite para penalizar figurões pilhados em crimes eleitorais, o TSE nunca levou adiante pedidos de punição contra presidentes, embora todos os chefes do Executivo desde a redemocratização tenham enfrentado processos por supostas irregularidades em campanhas. No caso mais notório, o tribunal rejeitou a enxurrada de provas da Lava-Jato que demonstravam como a campanha à reeleição de Dilma Rousseff e Michel Temer, em 2014, foi financiada por esquemas ilícitos derivados do escândalo de corrupção na Petrobras. O PT conhece bem esse histórico, mas acha que o pedido de inelegibilidade pode prosperar porque, se for analisado, será quando Bolsonaro já estiver sem mandato e, portanto, com bem menos poder.
Como o remédio é amargo demais e até agora inédito, ministros e advogados com trânsito no TSE admitem ser remota a declaração de inelegibilidade. Apesar disso, eles observam que, se o presidente em fim de mandato ou seus seguidores tumultuarem o futuro governo e trabalharem para manter o discurso de que as eleições foram ilegítimas, a Justiça Eleitoral — sob a batuta do ministro Alexandre de Moraes e do corregedor Benedito Gonçalves, a quem caberá instruir o processo — poderia levar o tribunal a bani-lo temporariamente da vida política. Na prática, porém, a tese da inelegibilidade é mais uma arma de dissuasão do que uma bomba para ser detonada. “As hipóteses são o TSE tirar Bolsonaro de cena em 2026 ou simplesmente usar as ações como um recado de que ele deve fazer política como todo mundo e não colocar em xeque as instituições”, afirmou a VEJA um interlocutor que acompanha o caso.
Atualmente, existem dezesseis ações no TSE que pedem que o ex-capitão seja declarado inelegível. A mais consistente delas chegou à Corte depois de uma equipe contratada pelo PT ter conseguido levantar, a partir de técnicas de mineração de dados, como agiam e como lucravam perfis de apoiadores do presidente dedicados à divulgação de notícias falsas nas redes sociais. Com base no pedido dos petistas, o TSE determinou a retirada do ar de teorias amalucadas sobre irregularidades nas urnas e sobre supostos desígnios do tribunal para impedir um segundo mandato de Bolsonaro.
Na ação contra as fake news, a chapa Lula-Geraldo Alckmin apontou, por exemplo, que determinados seguidores do ex-capitão conseguiam ser monetizados nas redes com a propagação de teses sem pé nem cabeça e, paralelamente, desembolsavam dezenas de milhares de reais para impulsionar conteúdos fraudulentos. “As ações estão em curso no TSE e, se julgadas procedentes, implicam a perda dos direitos políticos de quem for condenado. Isso não se aplica só a Bolsonaro, mas também a outros corréus que, se tiverem investidos de seus mandatos, também os perdem”, diz o advogado da campanha petista Eugênio Aragão.
Duas novas ações avaliadas como as mais robustas serão apresentadas nos próximos dias. Uma delas tratará de um movimento coordenado de Bolsonaro e de seus seguidores para pôr em risco a diplomação de Lula. O novo pedido tem como pano de fundo a presença, ainda expressiva, de apoiadores do ex-capitão em frente a quartéis militares e os apelos desses manifestantes para que haja uma intervenção militar contra o resultado das urnas. Uma lei sancionada pelo próprio Bolsonaro estabelece como crime atentar contra o funcionamento das instituições durante o processo eleitoral e prevê penas de até seis anos de cadeia. “Essas alegações nada mais são do que um ato de desespero da esquerda brasileira, que pretende, por via transversa e de forma ardilosa, usar de forma indevida a máquina pública, o Judiciário e o TSE para aniquilar seu maior concorrente”, reclama o advogado de Bolsonaro, Frederick Wassef. Na outra ação a ser apresentada, a equipe jurídica do petista pretende alegar que uma lista de bombas fiscais tratadas como bondades pelo governo federal seria, na verdade, uso da máquina estatal com objetivos eleitorais e poderia se enquadrar como crimes passíveis de levar ao banimento de Bolsonaro por oito anos. Na lista estão gastos com o Auxílio Brasil, o controle no preço dos combustíveis e o pagamento de benefícios a caminhoneiros.
Há pelo menos um ano o TSE analisa questões jurídicas que, no limite, poderiam deixar Jair Bolsonaro inabilitado para disputar eleições. O primeiro passo foi a abertura de uma investigação própria, em meados de 2021, depois de o presidente ter feito uma transmissão ao vivo acusando a Justiça Eleitoral de ser complacente com supostas evidências de manipulação em urnas eletrônicas. O inquérito, sigiloso, perde a validade nos próximos dias com o fim do mandato do ex-capitão. Às vésperas do segundo turno, quando as contestações de Bolsonaro atingiram o ápice com questionamentos infundados sobre boicotes de rádios a programas eleitorais bolsonaristas, partiu dos próprios integrantes do TSE e do Supremo Tribunal Federal a avaliação de que o jeito mais eficaz de parar o presidente seria a apresentação de ações com pedidos de investigação de supostos abusos eleitorais. “Hoje eu não descarto que o TSE declare Bolsonaro inelegível, por exemplo, pelo pacote de falsas bondades durante as eleições”, disse a VEJA, sob condição de anonimato, um ministro do Supremo. Estimulada pelo PT, a guerra fria entre a Justiça Eleitoral e o presidente está longe do fim.
Publicado em VEJA de 7 de dezembro de 2022, edição nº 2818