Deflagrada em 2014, a Operação Lava-Jato chacoalhou o sistema político brasileiro, trazendo à tona esquemas bilionários de propinas que envolviam as lideranças dos maiores partidos do país. Ao longo de quase sete anos, 357 pessoas, entre lobistas, empresários e, principalmente, políticos, foram julgadas e condenadas nas duas principais frentes da investigação, capitaneadas pelo juiz Sergio Moro e pelo procurador Deltan Dallagnol, em Curitiba, e pelo juiz Marcelo Bretas, no Rio de Janeiro. A constatação do uso intensivo por todos eles de métodos pouco ortodoxos, prisões preventivas extensas e apego excessivo a delações premiadas fez a maré virar.
Aos poucos, a maior operação contra a corrupção da história nacional se transformou em gigantesca batalha política e a Lava-Jato passou a colecionar reveses. Os três grandes acusadores ingressaram no rol de acusados. Enrolado em denúncias, Dallagnol, eleito deputado federal pelo Podemos em 2022, acaba de ter o mandato cassado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Moro, hoje senador do União Brasil, pode enveredar pelo mesmo caminho. E as denúncias contra Bretas, que segue na carreira jurídica, continuam a aparecer.
O juiz carioca, afastado da 7ª Vara Criminal pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) por suposto desvio de conduta, também é acusado de se envolver na venda de sentenças. Ironicamente, a descrição da conduta imprópria relacionada a Bretas consta de um depoimento, o mesmo instrumento a que recorreu várias vezes em delações para sustentar acusações na Lava-Jato, e faz parte de dois procedimentos que questionam a sua imparcialidade: uma ação na Justiça Federal e uma representação no CNJ. VEJA teve acesso exclusivo ao documento lavrado em agosto de 2021 no cartório da cidade de Paraíba do Sul, a 140 quilômetros do Rio, anexado aos processos. Na folha 21 do livro 13, Rogério Onofre de Oliveira, ex-presidente do Departamento de Transportes Rodoviários (Detro/RJ), condenado por corrupção passiva, evasão de divisas, lavagem de dinheiro e formação de quadrilha, detalha as circunstâncias em que lhe foi oferecida a liberdade — “via Bretas” — em troca de 8 milhões de reais.
Segundo Onofre, a proposta foi apresentada a ele pelo advogado Nythalmar Dias Ferreira Filho — ele próprio um delator que gravou conversas com Bretas em que os dois aparecem orquestrando movimentos em processos da Lava-Jato fluminense, conforme revelado por VEJA, e incluiu os áudios no acordo de colaboração que firmou com a Procuradoria-Geral da República. Onofre relata que foi visitado onze vezes pelo advogado nos catorze meses em que permaneceu detido preventivamente no presídio de Bangu 8, tudo devidamente registrado. Munido de uma pasta com informações sobre sua vida pessoal, Nythalmar teria dito que ele iria pegar uma pena de cinquenta anos de prisão, por estar sendo acusado de participação no milionário propinoduto do ex-governador Sérgio Cabral — no caso, uma negociata que rendeu 43,4 milhões de reais em subornos, pagos para favorecer empresas de ônibus. Além dele, teria dito o advogado, sua mulher na época, Dayse Onofre, também corria o risco de ser condenada a vinte anos, deixando o filho do casal desamparado. A saída seria recorrer a um “esquema” existente na 7ª Vara com dois procuradores amigos, teria lhe explicado Nythalmar, sem revelar a identidade deles.
Onofre conta que desconfiou da proposta. “Perguntei como que dois procuradores poderiam resolver isso de forma tão rápida, indagando-o como que o juiz Marcelo Bretas, que é rigorosíssimo, ia fazer vistas grossas e compactuar com tudo isso”, relatou em seu depoimento. Resposta imediata do advogado: “Bretas é o chefe do esquema”. Sempre de acordo com o delator, deu-se início então a uma série de negociações com a participação de Dayse, que se encontrou diversas vezes com Nythalmar em um apartamento em Copacabana. Ela diz que ele a pressionava pelo dinheiro, insistindo que os imóveis da família fossem vendidos para selar o acordo. A negociata, no entanto, não prosperou. Não só Rogério Onofre acabou condenado por Bretas a quarenta anos de prisão como Dayse recebeu pena de treze anos — castigo exagerado que seria fruto de uma vingança do juiz, segundo o réu. “A atuação do advogado Nythalmar traz uma névoa de dúvidas sobre a higidez da sentença”, diz Filipe Roulien, advogado de Onofre.
Bretas responde a outros três procedimentos no CNJ e, desde que foi afastado da função, ao menos vinte ações passaram a questionar na Justiça a imparcialidade de seus julgamentos. Enquanto trata de sua defesa, o juiz inunda o Instagram com vídeos em que exibe a cultivada musculatura e fala de Deus. “Nunca ouvi nada a este respeito. Seria mais uma mentira útil. Se confirmada a existência desse relato, a Polícia Federal e o Ministério Público Federal serão instados por mim a investigar e processar a prática, dentre outros, dos crimes de calúnia e denunciação caluniosa pelos citados”, afirma o juiz a VEJA. A declaração de Onofre também foi levada para a OAB, em uma representação contra Nythalmar que se soma a outras duas já existentes. “Não é a primeira vez que um réu tenta usar o meu sangue para lavar seus pecados”, diz o advogado. “Não cabe a mim julgar a estratégia de defesa do senhor Rogério, mas certamente mentiras não trarão bons resultados.” Hoje em liberdade, Onofre diz que não sai da cama, sofrendo de câncer, cardiopatia, hipertensão e diabetes. A Lava-Jato continua a deixar suas marcas, mas agora do outro lado da correnteza.
Publicado em VEJA de 31 de maio de 2023, edição nº 2843