Cappelli vira curinga do governo e opção do PSB para as eleições de 2026
Visibilidade adquirida pelo secretário-executivo do Ministério da Justiça, o 'faz-tudo da República', abriu caminho para considerar um possível voo solo
Era fim da manhã da última terça-feira, 7, quando tocou o celular do ministro da Defesa, José Múcio. “Ministro, a reunião foi muito ruim, viu?”, disse do outro lado da linha, sem meias-palavras, Ricardo Cappelli. O secretário-executivo do Ministério da Justiça resumia o resultado de um encontro do comitê que acompanha a execução do decreto de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), que permitiu a atuação de militares em ações de combate ao crime organizado no Rio de Janeiro. Composto por representantes da Polícia Federal, das três Forças Armadas e do governo, o grupo realizava a primeira avaliação do trabalho, encerrada em meio a um constrangimento geral. Cappelli relatou o que havia acabado de acontecer. Segundo ele, o almirante da Marinha destacado para fazer parte da equipe parecia irritado, passou o tempo inteiro de braços cruzados e cara fechada, provocou a Polícia Federal, reclamou da falta de dinheiro para a operação e ainda disse que o decreto assinado por Lula era pouco claro.
O ministro da Defesa ouviu com atenção as ponderações do secretário-executivo. Horas mais tarde, o vice-almirante Paulo Renato Rohwer foi substituído. “Está achando que eu vou para uma reunião dessas para ficar de palhaçada?”, comentou, depois, com um auxiliar. E anunciou: “Acabei de derrubá-lo”. Múcio achou por bem indicar seu chefe de gabinete — um civil — como novo integrante do comitê. Afinal, não era a primeira rusga que Cappelli tinha com militares de alta patente, em mais um episódio que comprova que ele é o funcionário de segundo escalão mais poderoso da República — mais poderoso, ressalte-se, que muitos ministros. Assumindo diferentes missões e acumulando embates, amigos e inimigos, Ricardo Cappelli vem consolidando a fama de curinga do governo, um “resolvedor” de problemas. Seu mais recente desafio foi justamente coordenar o esforço federal para frear a onda de violência no Rio de Janeiro, apesar da pouca experiência na área de segurança.
Formado em jornalismo e com especialização em administração pública, Cappelli chefiava, até o ano passado, a comunicação de Flávio Dino enquanto governador do Maranhão. Em dezembro, foi convidado a ser o número 2 no Ministério da Justiça e mal havia se acostumado à cadeira quando estourou o fatídico 8 de Janeiro. Naquele dia, o governo tinha certeza de que havia um golpe em andamento para tirar Lula do poder. Era preciso agir rápido. Decidiu-se que haveria uma intervenção na segurança pública do Distrito Federal, mas logo surgiu a dúvida sobre quem teria condições de assumir a delicadíssima missão. Dino disse ao presidente que seu “Zero Dois” era a pessoa certa. “Mas quem é?”, questionou Lula. Ouviu do ministro as melhores referências. Disciplinado, Cappelli foi a campo. Tentou entrar no QG do Exército para prender os manifestantes acampados, confrontou generais e, por pouco, não provocou uma crise militar. “Me entregaram no dia 8 um avião numa turbulência e caindo. Meu papel era segurar o avião, estabilizá-lo e botar no solo com todo mundo vivo. Foi o que eu fiz”, diz ele.
À frente da Secretaria de Segurança por 23 dias, Cappelli demitiu 13 pessoas, entre as quais o comandante da Polícia Militar, acusado de facilitar a ação dos vândalos. Depois disso, habilidoso, definiu como estratégia se aproximar da força, passou a fazer elogios públicos dizendo ter plena confiança nos policiais e até intermediou com o presidente um aumento para a categoria — recebeu, ao fim, uma medalha de honraria da PM. Em maio, ainda sob os efeitos do 8 de Janeiro, veio outra missão espinhosa. Cappelli foi convocado para uma reunião no Palácio do Planalto. Lá, Lula disse que havia demitido o general que comandava o Gabinete de Segurança Institucional e queria que ele assumisse interinamente para promover uma “renovação” no órgão, visto pelo governo como um antro de bolsonaristas. Após 15 dias de gestão, Cappelli afastou 90 pessoas, militares em sua maioria. A missão também foi considerada como muito bem-sucedida.
Tão logo correram o mundo as notícias do total descontrole do aparato de segurança do Rio de Janeiro, com atos de vandalismo, ônibus incendiados e onda de assassinatos, Cappelli foi acionado pela terceira vez. “Você vai para o Rio. Segura lá”, disse Flávio Dino, de supetão, ao bolar um plano, também realizado de supetão, para tentar mostrar algum tipo de reação do governo aos problemas de segurança pública. Desde então, o secretário já foi quatro vezes ao estado, mantém conversas com o governador, o prefeito, delegados da Polícia Federal, da Receita e do Coaf, além de integrar o comitê que vai monitorar a GLO, que entrou em vigor na última semana e tem previsão de durar seis meses. A ideia do Planalto é robustecer, com homens da Marinha, Aeronáutica e Exército, a atuação dos agentes federais nas fiscalizações nos portos e aeroportos de São Paulo e do Rio, além de regiões fronteiriças, com o objetivo de coibir a entrada de drogas e de armas no país.
A nova missão do “resolvedor” é uma missão impossível de ser resolvida. Enquanto, segundo Lula, a medida vai “definitivamente tirar o poder do crime organizado”, especialistas em segurança pública ressaltam que experiências similares já foram testadas, não solucionaram absolutamente nada e, na maioria das vezes, funcionaram apenas como peça de propaganda. “Como uma resposta política, se repete a receita de todos os governos de, na crise, chamar os militares”, afirma Renato Sérgio de Lima, presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. “Na minha avaliação, acerta-se ao ser uma ação integrada. Mas ela não atinge o Comando Vermelho, não atinge as milícias, não combate a corrupção nas polícias nem reestrutura o efetivo dos agentes federais. É apenas um paliativo, um remédio genérico”, acrescenta. Cappelli afirma que se joga com as armas disponíveis. “É claro que eu defendo tudo isso, mas precisamos de uma solução imediata”. E resume: “É o seguinte: entre o ideal e o não fazer nada, não vamos escolher a segunda opção”.
O faz-tudo da República tem uma longa trajetória na esquerda. Em 1998, quando tinha 26 anos, Cappelli comandou a União Nacional dos Estudantes (UNE). Naquele tempo, já tinha fama de executar missões complicadas. Consta que seu empenho foi fundamental para a vinda ao Brasil do ditador cubano Fidel Castro, que participou de um congresso da UNE. À época, Cappelli era filiado ao PCdoB, partido no qual esteve por 26 anos e pelo qual também disputou as eleições para vereador e deputado estadual no Rio de Janeiro. Em 2021, se filiou ao PSB, sempre seguindo os passos de Dino, seu mentor. Mas sua estrela começa a ganhar algum brilho próprio. Tamanha visibilidade adquirida nestes primeiros dez meses de governo abriu caminho para o secretário considerar a possibilidade de um voo solo. O PSB do DF planeja lançá-lo na disputa de um cargo majoritário em 2026 — ao Senado ou, quem sabe, até mesmo o governo de Brasília.
Seu trunfo eleitoral seria justamente a atuação dele como interventor na área de segurança, tema importante nos debates políticos na Capital. O mote de campanha não exigiria muita criatividade: “Chama o Cappelli!”, dizem alguns aliados. Questionado sobre uma eventual candidatura, o secretário desconversa: “Eu tenho um mantra com a minha equipe que é o seguinte: toda segunda a gente se reúne para passar a agenda da semana e eu digo para eles que o nosso objetivo é chegar vivo na sexta-feira. Acho uma sandice as pessoas falarem em 2026”. Assim, de maneira absolutamente espontânea, o secretário tem aproveitado as poucas horas vagas em Brasília para se reunir com empresários e trabalhadores, comparecer a eventos públicos, receber condecorações, comer pastel na feira, registrando imagens desses momentos e publicando tudo em suas redes sociais — sem nenhum outro interesse, ressalte-se.
Publicado em VEJA de 10 de novembro de 2023, edição nº 2867