Carta ao Leitor: Prioridade nacional
Os brasileiros esperam mais seriedade e profundidade no debate sobre segurança, além de ações emergenciais e concretas
O Brasil tem enorme dificuldade para lidar com algumas realidades. Na área de segurança pública, o retrato atual é de verdadeira calamidade, cuja dimensão pode ser traduzida em um número: segundo pesquisa recente da Datafolha, de 2024 para cá, aumentou de 14% para 19% a fatia da população que vive em áreas dominadas por facções ou milícias. Com isso, temos hoje 28,5 milhões de pessoas morando em regiões comandadas por criminosos. É como se uma Austrália inteira vivesse sob as ordens dos fora da lei. Os chamados complexos do Alemão e da Penha, no Rio de Janeiro, representam um dos maiores exemplos daqui da derrota do Estado na disputa territorial com os bandidos. São cerca de 110 000 moradores convivendo no dia a dia com o Comando Vermelho (CV). Chegou-se a um ponto em que não bastam mais simples blitze da PM para tentar retomar a ordem. Qualquer incursão nessa área extremamente hostil vira operação de batalha. Quando isso ocorre, há um enorme risco de que o saldo final seja digno de uma verdadeira guerra.
Foi exatamente o que aconteceu na terça-feira 28, quando 2 500 agentes entraram nos complexos do Alemão e da Penha para cumprir 100 mandados de prisão contra membros do CV. Acabaram sendo recebidos por cerca de 1 000 soldados da facção, segundo estimativas do governo do Rio. O armamento pesado nas mãos dos criminosos incluía granadas lançadas por drones. Até a última quarta-feira, 29, a contabilidade resultante do conflito apontava para um recorde de 121 mortes, incluindo as de quatro policiais. Ocorreram também 133 prisões e a apreensão de quase uma centena de fuzis. Ainda mais lamentável que isso foi ver, mais uma vez, autoridades envolvidas em um tiroteio de críticas, dentro da discussão sobre o papel de cada uma. O governador do Rio, Cláudio Castro, cobrou ajuda federal. Do lado do Planalto, o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, negou a falta de auxílio e disse que Castro deveria assumir responsabilidades. Enquanto se perde tempo com esse tipo de discussão, o crime avança, sendo que o Rio é o caso mais gritante do fracasso de políticas públicas de segurança no país, um problema que não é de hoje, aliás vem de décadas.
Enquanto o Estado se mostra desorganizado, o crime é cada vez mais organizado. Até hoje, discutem-se coisas básicas, a exemplo de como fazer a integração entre as forças estaduais e federal. Do ponto de vista ideológico, não existe também consenso a respeito da melhor forma de abordagem no enfrentamento à criminalidade, mais um ponto de polarização entre esquerda e direita no país, sendo que as chamadas gestões progressistas, em média, apresentam números piores nessa área, um dos tópicos abordados em reportagem desta edição.
Episódios como o dos complexos do Alemão e da Penha mostram ainda como soluções discutidas há tempos, e que ressurgem a cada crise com ar de novidade, nunca foram implementadas no país a contento. Em vez da prometida asfixia financeira das facções, o que se vê é a multiplicação dos tentáculos dos criminosos em diversas áreas de negócios. Tendo em conta que a segurança é hoje o tema que mais preocupa a população, as discussões sobre o assunto tendem a esquentar com a proximidade do calendário eleitoral de 2026. Os brasileiros esperam mais seriedade e profundidade no debate, além de ações emergenciais e concretas. É preciso evitar que o Brasil vire o território do crime, fazendo disso uma verdadeira prioridade nacional.
Publicado em VEJA de 31 de outubro de 2025, edição nº 2968
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