Carta ao Leitor: Um grito de alerta
Já passou da hora de atitude urgente para mitigar os estragos provocados pelas mudanças climáticas
![PIONEIRA Rachel Carson, autora de 'Primavera Silenciosa', de 1962: “Guerra sem tréguas contra a vida”](https://beta-develop.veja.abril.com.br/wp-content/uploads/2024/05/GettyImages-455251748.jpg.jpg?quality=90&strip=info&w=1280&h=720&crop=1)
A postura inepta das autoridades políticas diante das tragédias ambientais parece ser atávica, sinônimo de irresponsabilidade. As ações lentas — quando não o desdém a alertas preliminares e o descaso com os investimentos em contenção — resultam em cenas dramáticas como as do Rio Grande do Sul, coberto de água e lama desde o início de maio. Não é exclusividade brasileira, como a jabuticaba — basta lembrar dos estragos do furacão Katrina, que varreu a região metropolitana de Nova Orleans, nos Estados Unidos, em agosto de 2005. A letargia amplia os desastres naturais. Não se trata de afirmar que reações rápidas e adequadas, associadas à prevenção, sejam capazes de sempre frear a força inigualável da natureza. Não. Mas há um aspecto ainda mais terrível na imprudência oficial — a falta de controle e de regras tem acelerado, no mundo industrializado movido a combustíveis fósseis, as mudanças climáticas que empurram a humanidade para o precipício.
Já passou da hora, portanto, de atitude urgente. Há tempo de correção, caminhos sobejamente conhecidos para mitigar os estragos, e não vivemos o fim dos tempos. Os resultados desastrosos, contudo, se espraiam com rapidez — os efeitos já não se resumem à inaceitável morte de pessoas fragilizadas, multidões sem casa, plantações arruinadas pela chuva ou pela seca, aeroportos inundados. Na era dos extremos, uma série de pesquisas aponta para os malefícios que o desequilíbrio climático causa à saúde. Hoje, mais de 525 milhões de pessoas são vítimas de insegurança alimentar em decorrência do impacto do clima nas safras. Chegará a 370% o crescimento do número de fatalidades relacionadas ao calor se o aumento da temperatura global atingir 2 graus na metade do século, como tristemente previsto.
![VEJA-962.jpg HISTÓRIA - Capas de VEJA das décadas de 80 e 90: retrato do clamor da sociedade, num tempo em que se dizia “ecologia”](https://beta-develop.veja.abril.com.br/wp-content/uploads/2024/05/VEJA-962.jpg.jpg?quality=90&strip=info&w=1024&crop=1)
É preocupante — sobretudo vergonhoso — imaginar que, apesar de alguns avanços, como a constituição do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), e sucessivos eventos em forma de cúpulas internacionais, tenhamos caminhado de lado. É clamor que VEJA tem acompanhado desde seu início, em 1968, em reportagens de capa, ao refletir os humores da sociedade — clamor que recebeu ouvidos moucos dos poderosos de mãos dadas com a ganância, como se os militantes da ideia de preservação e conservação fossem lunáticos. Não pode ser assim. A vagareza deve ser interrompida. Convém lembrar o grito da filósofa e bióloga marinha americana Rachel Carson (1907-1964), autora de Primavera Silenciosa, de 1962 — de 1962! —, denúncia inaugural na defesa da ecologia, como se dizia naquele tempo, e revelação da nocividade dos inseticidas, antes celebrados como a salvação da lavoura. Eis o que disse Rachel, em trecho que parece ter sido escrito hoje: “A questão consiste em saber se alguma civilização pode levar adiante uma guerra sem tréguas contra a vida, sem destruir a si mesma e sem perder o direito de ser chamada de civilização”.
Publicado em VEJA de 31 de maio de 2024, edição nº 2895