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Cerco ao PCC escancara a crescente infiltração da facção no poder público

Com a prisão de políticos em São Paulo, operações policiais revelam as lições aprendidas pelo grupo com organizações mafiosas

Por Valmar Hupsel Filho, Adriana Ferraz Atualizado em 3 jun 2024, 16h47 - Publicado em 20 abr 2024, 08h00

Na última terça, 16, a polícia e o Ministério Público bateram às portas de dezenas de endereços em doze cidades paulistas para cumprir 42 mandados de busca e apreensão e quinze de prisão. O saldo da operação incluiu 4 milhões de reais em cheques e dinheiro, armas, munições, celulares, computadores e o mais relevante: três vereadores presos, dois deles ex-presidentes de Câmaras Municipais — um do MDB, um do PSD e outro do Podemos —, sob a acusação de integrar um grupo que atuava para lavar dinheiro para o Primeiro Comando da Capital (PCC) por meio de contratos públicos de administração de pessoal com prefeituras, em valores que ultrapassam 200 milhões de reais. A ofensiva escancarou mais uma vez a crescente — e bastante preocupante — contaminação do poder público pelos negócios escusos da maior facção criminosa do país.

O grau de alerta já havia sido elevado a outro patamar na semana anterior, em outra operação em São Paulo, berço da organização criminosa. Uma megaoperação comprovou a ligação do PCC com o sistema de transporte de passageiros na maior cidade do país. As diretorias de duas empresas de ônibus foram afastadas sob a suspeita de integrarem esquema de lavagem de dinheiro para a facção por meio de contratos públicos. Juntas, a Transwolff e a UpBus transportam 15 mi­lhões de passageiros por mês na capital paulista e faturaram 870 milhões de reais em 2023. Como era esperado, a investigação apontou falhas na fiscalização de contratos, uma vez que membros da quadrilha condenados por tráfico integravam formalmente as diretorias das empresas contratadas pela prefeitura — a apuração poderá ter desdobramentos sobre a conduta de agentes públicos. Mais quatro companhias estão sob investigação.

A estratégia da facção de usar serviços públicos para lavar dinheiro sujo já era perceptível desde a proliferação de perueiros na cidade no início dos anos 1990, quando os ruídos de contaminação criminosa da atividade clandestina já eram intensos. Em 2020, uma operação identificou que integrantes da facção comandavam todo o sistema de saúde e coleta de lixo do município de Arujá, na região metropolitana de São Paulo, controlando sessenta clínicas médicas e organizações sociais que administravam um hospital e um posto de saúde.

As operações revelam as lições aprendidas pelo PCC com organizações mafiosas que cresceram apoiadas na combinação de dinheiro sujo, negócios legítimos e infiltração na política. “Há muitas décadas que a máfia italiana, por exemplo, interfere em licitações públicas para lavar dinheiro ou diversificar seus negócios. E sob violência. Com o PCC é a mesma coisa”, afirma Leandro Piquet Carneiro, coordenador da Escola de Segurança Multidimensional (ESEM-USP). O uso de empresas de fachada para inserir dinheiro ilícito no mercado formal está na origem do próprio crime de lavagem de dinheiro, que tem esse nome por causa da atuação de Al Capone. O mafioso ítalo-americano que dominou Chicago nos anos 1920 utilizava lavanderias para limpar não só roupas, mas também dinheiro sujo.

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ALVOS - Os vereadores Ricardo Queixão (PSD), Flávio Batista (Podemos) e Luiz Carlos Dias (MDB): acusações graves
ALVOS – Os vereadores Ricardo Queixão (PSD), Flávio Batista (Podemos) e Luiz Carlos Dias (MDB): acusações graves (@ricardo.queixao.1/Facebook; @inhavereadoroficial/Facebook; ./Reprodução)

Pesquisadores e investigadores consideram, no entanto, que o PCC passou a se utilizar de esquemas de lavagem a partir dos anos 2000. Inicialmente, o grupo utilizava-se de mecanismos mais simples, como aquisição de imóveis e veículos e uso de postos de combustíveis e pequenos negócios, como lojas e padarias. Em 2012, o MP apontou que a facção arrecadava 20 mi­lhões de reais por ano, a maior parte do tráfico, mas também por meio de rifas, ajudas de integrantes e mensalidade aos faccionados. Embora alguns membros da organização já estivessem em contato direto com produtores de cocaína da Colômbia e da Bolívia entre 2008 e 2010, investigadores apontam 2016 como o ano de ingresso efetivo da facção no mercado internacional de drogas, que deu um novo status ao PCC. Com a expansão dos negócios para Europa, África e, mais recentemente, Ásia, o faturamento estimado hoje é em torno de 5 bilhões de reais por ano.

Com a necessidade de esquentar tanto dinheiro ilícito e o cerco das autoridades às práticas de lavagem já conhecidas, a facção precisou buscar novas e mais sofisticadas formas de transformar dinheiro ruim em dinheiro bom. Um exemplo é a utilização de ferramentas financeiras modernas — que ainda são menos fiscalizadas —, como criptomoedas e fintechs (start­ups de crédito) e bancos digitais, que permitem transações vultosas longe dos olhos do poder público. Até por esse motivo, tem sido mais frequente a participação do Coaf, órgão do governo federal especializado em combater a lavagem de dinheiro, e da Receita Federal, que atuaram com o MP e a polícia nas operações recentes em São Paulo. O uso de financeiras digitais é considerado uma evolução em relação aos grandes doleiros, que ainda são largamente utilizados pela facção. Só em 2020, um relatório do MP apontou o envio de 1,2 bilhão de reais ao Paraguai por meio desse serviço.

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TEMPLO - Batida no Rio Grande do Norte: lavagem de dinheiro na igreja
TEMPLO - Batida no Rio Grande do Norte: lavagem de dinheiro na igreja (MP-RN/Divulgação)

Outra estratégia tem sido a abertura de templos religiosos, onde também a fiscalização é mais frouxa. No Rio Grande do Norte, foram identificados dois irmãos ligados ao PCC que lavaram 20 milhões de reais por meio de igrejas evangélicas abertas por um deles, que é pastor e está preso. “É um nicho para quem lava dinheiro no país, especialmente porque as instituições religiosas lidam com dinheiro em espécie, que entra e sai sem controle”, afirma o promotor de Justiça Augusto Lima, coordenador do Núcleo de Informações Patrimoniais do Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado de São Paulo (Gaeco) no estado. Também estão na mira dos investigadores o uso do garimpo ilegal e outras atividades criminosas na Amazônia (como a pesca) e a atuação de empresários que administram carreiras de jogadores de futebol e artistas de rap e funk.

FORA DA PISTA - Agente em garagem de ônibus: empresas sob suspeita
FORA DA PISTA - Agente em garagem de ônibus: empresas sob suspeita (Receita Federal/Divulgação)
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Para garantir o bom funcionamento da engrenagem criminosa, as facções vêm estendendo os braços para cooptar membros da Justiça e da política. Esse tipo de alerta foi aceso nos recentes episódios envolvendo contratos públicos nas prefeituras de São Paulo e outras cidades do entorno. Promotor do Gaeco que investiga há vinte anos a cúpula do PCC, Lincoln Gakiya afirma que a facção tem focado em candidatos a prefeito e vereador, com o objetivo de obter contratos e outras vantagens por meio da cooptação de agentes públicos. No caso da operação que varreu cidades da Grande São Paulo e do interior, a investigação apontou que o esquema de fraudes em licitações só foi possível por meio da corrupção de agentes públicos municipais. Um dos presos, o advogado Áureo Tupinambá, atuava na condição de diretor-secretário da Câmara de Cubatão, mas ele é também advogado de André de Oliveira Macedo, o André do Rap, um dos maiores traficantes do país, chefão do PCC e foragido há mais de três anos.

O crescimento das garras do PCC se deve, em grande parte, à falta de competência ou de interesse do poder público para enfrentar o problema. Um dos primeiros erros das autoridades ocorreu no início dos anos 90, quando subestimaram o potencial da facção. O alarme tocou forte em 2001, quando o grupo liderou uma megarrebelião em 29 unidades prisionais de SP, e disparou de vez em 2006, quando um levante nas ruas coordenado pelo PCC deixou mais de 500 mortos em São Paulo, boa parte deles agentes das forças de segurança. Por volta de 2020, quando a organização começou a operar com força no tráfico internacional de drogas, o combate a ela aumentou muito em nível de complexidade.

PIONEIRO - Al Capone: célebre nos anos 1920, mafioso abriu lavanderias para justificar o enriquecimento ilícito
PIONEIRO - Al Capone: célebre nos anos 1920, mafioso abriu lavanderias para justificar o enriquecimento ilícito (Chicago Sun-Times/Chicago History Museum/Getty Images)
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Embora as últimas operações tenham contado com MP, polícia, Receita, Coaf e o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), o Brasil tateia na tentativa de debelar a sua ameaça criminosa. “Todo mundo está trabalhando, mas de forma não integrada. As instituições investigam isoladamente. É preciso uma coordenação nacional”, defende Gakiya. No enfrentamento de uma falange criminosa cuja atividade se mostra cada vez mais sofisticada, é preciso que o poder público se mostre mais organizado do que os bandidos.

Publicado em VEJA de 19 de abril de 2024, edição nº 2889

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