Chamem a polícia
Receita para combater a criminalidade brasileira é trabalhosa, mas falta atribuir papel relevante a quem mais conhece o assunto — os agentes policiais
Nos quatro anos do governo Bolsonaro serão assassinadas pelo menos 200 000 pessoas e a violência do trânsito ceifará cerca de 150 000 vidas, 2 milhões de estupradores atacarão e mais de 20 milhões de vítimas sofrerão o terror nas mãos de assaltantes. Poucos criminosos serão apanhados, e essa violência estúpida terá custado mais de 1 trilhão de reais, pelos parâmetros de técnicos do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Reverter essa tendência é uma das missões mais importantes do novo presidente, cujo principal mote de campanha foi a segurança. E liberar as armas para a população só vai piorar esse quadro. Segundo estudo do economista Daniel Cerqueira, também do Ipea, o acréscimo de 1% no número de armas em circulação gera aumento de 2% no número de mortes.
A violência de nossas cidades decorre principalmente da polícia desorganizada e mal gerida, como no Rio de Janeiro, onde há mais sargentos que soldados na PM e 49% do efetivo está em todo lugar, menos nas ruas. Enquanto a Polícia Civil de Mato Grosso do Sul esclarece 55,2% dos homicídios e a de São Paulo, 38,6%, no Rio de Janeiro esse número limita-se a 11,8% e no Pará, a ridículos 4,3%. O crime cresce e se organiza no espaço concedido pela ineficiência da polícia e pela fragilidade dos instrumentos legais, que parecem movidos pela compaixão aos predadores. Respostas fracas fortalecem os violentos.
É hora de interromper as políticas fracassadas dos governos de esquerda, que rechaçaram leis criminais mais severas e desidrataram as forças policiais para tentar consertar as imaginadas raízes sociais da violência. Todas as medidas, porém, devem ser cuidadosamente analisadas. A redução indiscriminada da maioridade penal não me parece das melhores iniciativas. Sou a favor, no entanto, de um projeto que já está no Senado, de autoria do senador José Serra, que propõe pena aumentada para até oito anos em estabelecimento diferenciado para o menor que comete um crime violento. Psicopata não tem idade nem cura. Predadores precisam de contenção.
A volta do Sistema Único de Segurança Pública (Susp), criado no primeiro governo Lula, é rebento dessas crenças que subestimam o esforço policial e salientam outros fatores para o serviço de contenção da violência. Basta ver a lei do Susp, que contempla a polícia em apenas onze de suas 6 640 palavras. O Susp foi criado para ser marca do governo Lula na segurança, mas a leitura do relatório do Ministério da Justiça sobre a implantação do sistema (de 2003 a 2005) mostra que praticamente nada foi construído de útil. No entanto, o Susp foi ressuscitado como grande solução pelo ex-ministro Raul Jungmann (e o atual ministro Sergio Moro já disse que a missão do secretário nacional de Segurança Pública será implantar o Susp). A vitrine desses governos é um circo de horrores: o Brasil ocupa a 106ª posição entre os países mais seguros, segundo o Global Peace Index, e a morte de jovens — pobres, na maioria — triplicou no Ceará e na Bahia e quintuplicou no Rio Grande do Norte entre 2004 e 2014.
Por onde começar? A receita é trabalhosa, mas não complicada, e precisa de foco obsessivo na redução dos crimes. É importante dar relevância, até aqui não vista, aos que detêm mais experiência e conhecimento na ciência de contenção dos crimes nas ruas — os policiais civis e militares dos estados. Foram chamados militares, policiais federais, promotores, juízes ou acadêmicos para formular planos e estruturar a área da segurança, mas alijaram-se os policiais estaduais das decisões estratégicas, como se fossem agentes passivos das políticas do setor.
O que levou Nova York, Bogotá e o Estado de São Paulo a reduzir os homicídios em mais de 70% foi o investimento na capacidade de resposta de suas polícias. Nova York não fez nenhum plano complicado de segurança, mas fortaleceu a polícia dos distritos com o mapeamento dos locais de maior violência, decretou tolerância zero aos desordeiros e cobra resultados semanalmente de cada chefe, sem tropas de fuzis ou fardas camufladas. No primeiro ano da retomada da segurança da capital colombiana a polícia quintuplicou as prisões, prendeu mais de 60 000 por pequenas violações e triplicou a apreensão de armas. Com treinamento de alta qualidade e tecnologias avançadas que direcionam as ações policiais aos locais onde os criminosos mais atuam, a polícia paulista prendeu 2,2 milhões de criminosos e apreendeu quase meio milhão de armas nos últimos dezesseis anos. São Paulo tem um quarto da taxa nacional de homicídios e em cidades como Santos, no litoral paulista, o índice de assassinatos é o mesmo de Oslo, na Noruega: 2,26 mortos por 100 000 habitantes. Programas sociais ou receitas acadêmicas não tiveram nenhuma contribuição para esse recuo da violência na população paulista, que sofre, nas periferias, mazelas sociais semelhantes às dos habitantes de Natal ou da Rocinha. A esquerda acadêmica, que não reconhece os méritos dos policiais, a quem se refere como operadores de segurança pública, prefere, ridiculamente, debitar o êxito paulista a uma facção criminosa.
“Em Santos, cidade no litoral paulista, a taxa de homicídios é a mesma de Oslo, na Noruega: 2,26 por 100 000”
Prender enche prisões, mas a punição faz parte do processo de controle da violência. O economista Steven Levitt constatou que o aumento de presos na década de 90 nos Estados Unidos foi responsável pela redução de 28% nos homicídios, 36% nos crimes violentos em geral e 28% nos crimes contra a propriedade. Recentemente, Patrick Sharkey, professor da Universidade de Nova York, lançou um livro em que salienta o papel crucial da polícia no declínio da violência nos Estados Unidos, em especial as ações nas áreas de maior concentração criminal e as altas taxas de aprisionamento dos violentos. O problema então não é prender menos, é prender mais e melhor, e investir na construção de presídios. Construir 20 000 vagas prisionais custa 1 bilhão de reais, mas esse é o custo diário da violência no país. Então não é custo, é investimento.
Grande parte dos crimes, violentos ou não, tem raiz na impunidade. E trabalha-se essa impunidade para o controle da violência com a qualidade da resposta dada aos criminosos. Os instrumentos para essa resposta são básicos e universais: leis severas e processos criminais ágeis, incapacitando os predadores com penas longas e tratando os criminosos menos violentos com medidas dissuasórias marcantes, ainda que sejam apenados fora da cadeia.
A parte mais visível e impactante desse sistema é a polícia, através da estrutura maior que vigia as ruas com seus agentes uniformizados e de seu complemento que investiga crimes. A representação de autoridade do Estado que o policial carrega tem enorme impacto na ordem pública, muito além da mera ação de caráter criminal. A polícia, é bom que se diga, é insubstituível e nada produz seus efeitos — nem por um dia —, sejam guardas municipais, sejam as tropas aguerridas das Forças Armadas. Ocorre que no Brasil os governantes desprestigiam e gerem mal suas polícias. Quando a baixa hierarquia da PM pernambucana ficou desmotivada nas ruas por receber ajuste salarial menor que seus chefes, os homicídios saltaram de 3 100 para 5 427 em 2017. Esse estrago, como outros similares, não foi do crime organizado, mas de decisões equivocadas do governo.
A permanência na escola depois dos 15 anos e os programas de apoio a jovens podem contribuir para a redução da violência, as ações das prefeituras para a manutenção da ordem nas ruas são importante aditivo para conter distúrbios, mais empregos ajudam etc. etc. Mas, enquanto isso — e sabe-se lá quanto tempo vai demorar esse “enquanto isso” —, só a polícia pode conter a violência com a urgência de que precisamos. Cabe a Sergio Moro, ministro da Justiça e Segurança Pública, além das medidas anunciadas contra o crime organizado e da atualização da legislação criminal, promover a gestão eficiente das polícias estaduais para administrar riscos impactantes aos infratores. Nenhum presidente conseguiu ganhar essa guerra. Presidente Bolsonaro, é a sua vez.
* José Vicente da Silva Filho, ex-secretário nacional de Segurança Pública, é coronel reformado da PM de São Paulo e pesquisador do Instituto Fernand Braudel
Publicado em VEJA de 16 de janeiro de 2019, edição nº 2617