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Com mistura de crime e fé, Complexo de Israel acende alerta nas eleições

Só entram ali candidatos da mesma religião do chefe local

Por Lucas Mathias, Sofia Cerqueira Atualizado em 27 set 2024, 12h00 - Publicado em 27 set 2024, 06h00

Alijadas do poder público, as vastas áreas dominadas por marginais no Rio de Janeiro são regidas por leis próprias, cimentadas sobre a cultura do medo e movidas a violência. Pois, quando parece que a desfaçatez dos bandos que dominam nacos inteiros da cidade já alcançou o ápice, eis que desponta no horizonte um conjunto de favelas onde a bandidagem escalou mais um degrau. O Complexo de Israel, assim batizado em alusão à bíblica Terra Prometida, que reúne cinco comunidades na Zona Norte carioca, é o único reduto do crime não apenas no Rio, mas no país, onde o narcotráfico se alia à intolerância religiosa praticada com requintes de crueldade pela gangue no comando, seguidora da vertente evangélica pentecostal.

Nos últimos tempos, estima-se que quarenta centros e terreiros de reli­giões de matrizes africanas foram banidos do local. A novidade é que a quadrilha que manda e desmanda naquele pedaço começou a perseguir também instituições católicas, sob constantes ameaças. Nestes dias pré-­eleitorais, só têm entrado ali candidatos que professam a mesma fé da turma no poder, fazendo do território no qual vivem mais de 100 000 pessoas um dos mais difíceis para se praticar o exercício da democracia.

CRISTÃOS? - Dizeres religiosos: desfaçatez nos muros antes das matanças
CRISTÃOS? - Dizeres religiosos: desfaçatez nos muros antes das matanças (//Reprodução)

Foi nessa área minada, emoldurada por muros pichados com dizeres religiosos e alto-falantes que propagam mensagens da Bíblia, que o deputado federal Marcelo Queiroz (PP), candidato à prefeitura do Rio, esbarrou no implacável paredão dos criminosos. Apareceu por lá ainda em pré-campanha, para uma reunião com lideranças, e acabou rendido por dois homens armados. “Tentei argumentar que era deputado e tinha uma agenda ali, mas não acreditaram”, lembra Queiroz. Na mira de pistolas, ele teve o carro, conduzido por um amigo, revistado e só foi liberado ao ser reconhecido por um dos bandidos por seu trabalho social. Por questão de sobrevivência, riscou aquelas favelas do circuito. Não é o único neste pleito a ver subtraído o direito de ir e vir. Também candidato, o delegado e ex-diretor da Abin Alexandre Ramagem (PL) conta que evita pisar na localidade. “É uma infelicidade não poder entrar em determinadas comunidades”, diz.

A situação no complexo escalou a um ponto de tamanho escracho com a lei que o Tribunal Regional Eleitoral (TRE) fluminense decidiu trocar de endereço quatro zonas de votação antes encravadas naquelas bandas. O obje­tivo é tentar minimizar os riscos de moradores serem coagidos ao ir às urnas. A tensão eleitoral reflete um cenário em que as garras do crime se fazem sentir em todos os departamentos da vida. Por trás dessas engrenagens está uma figura que há tempos vem povoan­do as páginas policiais — o traficante Álvaro Malaquias Santa Rosa, 37 anos, conhecido como Peixão, líder do Terceiro Comando Puro, uma das grandes facções do estado. É notório que, no complexo, as regras ditadas por ele são mais severas do que em outras favelas sob o jugo de quadrilhas, até pelo filtro religioso em vigor.

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Relatos de quem vive na região dão os contornos do dia a dia. É proibido andar na rua com celular na mão — e instalar câmeras na parte externa das residências, nem pensar. Tudo para evitar que o terror imposto pela Tropa de Aarão, como os marginais que servem a Peixão se autointitulam, seja flagrado em imagens. As normas estabelecidas pela facção, que se aliou a milícias, também envolvem a obrigatoriedade de consumir os serviços que ela provê. “Cortaram o sinal das operadoras de TV a cabo e nos forçam a usar o sistema deles”, exemplifica uma moradora, que, por medo, pediu anonimato. O controle é tanto que, de acordo com investigações do Ministério Público do Rio, às quais VEJA teve acesso, o complexo se tornou o único QG do crime fluminense a adotar drones para vigiar o território.

QUEM MANDA - Álvaro Malaquias, o Peixão: investigado por 61 homicídios
QUEM MANDA - Álvaro Malaquias, o Peixão: investigado por 61 homicídios (//Reprodução)

O lugar passou a despertar a atenção das autoridades em 2016, quando o bando de Peixão começou a atacar centros de umbanda e candomblé, expulsando seus líderes. “Pais de santo tiveram que deixar o complexo com a roupa do corpo, e muita gente foi embora apavorada”, conta o vereador Átila Nunes (PSD), que recebe denúncias de intolerância religiosa de todo o país. E, ali, ai do morador que vestir roupas brancas, além de guias e colares de contas, símbolos de religiões afro-brasileiras. “Esse traficante se acha imbuí­do de uma missão divina e acredita ser mais correto que outros bandidos”, afirma a socióloga Christina Vital, da UFF, autora de um livro sobre a região. Num ritual que em nada se aproxima do Evangelho, o chefe cultiva o hábito de orar com seus comparsas, rodeados de fuzis, antes de partirem para o ataque a quadrilhas rivais. “Além de um nebuloso discurso de legitimação que faz uso de elementos religiosos, a facção que domina o complexo possui peculiaridades, como a ostensiva cooptação de agentes”, ressalta o promotor Fabio Corrêa, coordenador no MP do Gaeco. A polícia ainda apura a suspeita de lavagem de dinheiro do tráfico por meio de instituições evangélicas.

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As manifestações de intolerância à fé alheia seguem a toda na área, em permanente desrespeito. Em julho, circulou em grupos de WhatsApp da comunidade que haveria ordens de criminosos para fechar três igrejas católicas de lá. A polícia reforçou então a segurança. Embora a Arquidiocese do Rio negue a existência de tamanha aberração, ela é bem palpável para os que habitam neste canto da Avenida Brasil, de onde é possível avistar uma Estrela de Davi de neon bem em cima de uma caixa-d’água. “Tenho percebido que as missas andam mais vazias por aqui”, confirma um morador. “Peixão usa a crença para conquistar a simpatia de alguns e impor o terror aos demais. É um bandido tão nocivo como qualquer outro”, avalia o secretário de Segurança Pública, Victor Cesar dos Santos, para quem colocá-lo atrás das grades é mera questão de tempo. Que seja o quanto antes: há mais de 200 investigações em curso sobre a atuação do traficante e seu nome aparece ligado a 61 homicídios e vários desaparecimentos. Como se vê, um currículo nada cristão.

Publicado em VEJA de 27 de setembro de 2024, edição nº 2912

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