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Comissão da Verdade: 8 anos depois, ninguém foi levado ao banco dos réus

Das 377 pessoas que foram acusadas por crimes na ditadura militar, a grande maioria (269) já morreu

Por Diogo Magri Atualizado em 4 jun 2024, 12h22 - Publicado em 27 mar 2022, 08h00
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  • O delegado Carlos Alberto Augusto ocupou na ditadura (1964-1985) o cargo de investigador no Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo (Deops/SP), um dos braços da repressão política do regime. Trabalhou sob as ordens de célebres torturadores, como o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra (ídolo do presidente Jair Bolsonaro, por sinal), e ganhou o apelido de “Carlinhos Metralha” pelo hábito de andar pelos corredores portando uma arma do tipo. Augusto só sofreu as consequências de ter colaborado com o regime mais de quarenta anos depois. Foi denunciado pelo Ministério Público Federal em 2012 por participação no sequestro do ex-fuzileiro naval Edgar de Aquino Duarte (desaparecido desde 1973) e se tornou o primeiro ex-agente condenado pelo Judiciário brasileiro por violações na ditadura, em sentença proferida pela 9ª Vara Criminal Federal de São Paulo, em 2021. O episódio poderia abrir um precedente histórico, mas, em pouco tempo, houve uma reviravolta. Em fevereiro último, o Tribunal Regional Federal da 3ª Região aceitou um recurso da defesa e extinguiu a punibilidade por prescrição dos crimes.

    A história é mais uma a exemplificar a dificuldade do Brasil em punir agentes da ditadura. Em 2014, a Comissão Nacional da Verdade concluiu um relatório no qual listava 377 pessoas apontadas como perpetradoras de crimes contra os direitos humanos. Segundo o levantamento do Instituto Vladimir Herzog feito para Veja, 269 já morreram sem ter se tornado réus na Justiça, duas delas recentemente: o delegado gaúcho Pedro Seelig, o “Fleury dos Pampas” (em 9 de março, aos 87 anos), e José Anselmo dos Santos, o Cabo Anselmo, um agente infiltrado em organizações de esquerda (15 de março, aos 81 anos). Sete anos depois, o MPF acumula mais de cinquenta ações penais contra nomes da lista que foram rejeitadas ou arquivadas pela Justiça.

    PASSO ATRÁS - Carlinhos Metralha; recurso aceito contra a condenação -
    PASSO ATRÁS - Carlinhos Metralha; recurso aceito contra a condenação – (Michel Filho/Agência O Globo)

    Entre os 98 vivos (e dez de que não se tem informação) há outros casos simbólicos. Um deles é o de Wilson Luiz Chaves Machado, o coronel que sobreviveu ao atentado do Riocentro, em 1981, uma tentativa fracassada dos militares de incriminar opositores e justificar o endurecimento da repressão. Ele foi denunciado pelo MPF em 2014 e absolvido pelo Superior Tribunal de Justiça em 2019. Jacy Ochsendorf e Souza, apontado como responsável pela morte do deputado Rubens Paiva, foi denunciado em 2014, mas o caso acabou sendo trancado pelo STF após recurso da defesa e está parado desde 2018. Três acusados na mesma ação já morreram.

    O nó górdio da situação está na interpretação sobre o alcance da Lei da Anistia. Anunciada em 1979 como “ampla, geral e irrestrita”, tanto para agentes do regime quanto para opositores, ela tinha o objetivo de distender o país e favorecer a transição à democracia. O MPF tenta fazer valer o entendimento do direito internacional de que as violações da ditadura são crimes contra a humanidade, o que as tornam imprescritíveis e não contempladas pela Lei da Anistia. Com base nessa interpretação, o Brasil já foi condenado duas vezes pela Corte Interamericana de Direitos Humanos por não punir ex-agentes da ditadura.

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    REPRESSÃO - Policiais agridem manifestante em 1968: crimes sem punição -
    REPRESSÃO - Policiais agridem manifestante em 1968: crimes sem punição – (Evandro Teixeira/.)

    A despeito do esforço do MPF, as mais altas instâncias da Justiça no país não têm concordado com esses argumentos. Em 2010, ao julgar alegação da OAB de que a Lei da Anistia estava em desacordo com a Constituição de 1988, o STF entendeu que ela seguia válida. Outra ação nesse sentido, do PSOL, está no tribunal há cinco anos e nunca foi pautada. “Não é uma questão jurídica, é falta de vontade política. O STF insiste em uma jurisprudência ilegítima”, diz Marlon Weichert, procurador do MPF que atua na área de crimes contra a humanidade.

    Dessa forma, o Brasil prossegue sendo uma exceção entre os principais vizinhos sul-americanos, que levaram seus criminosos ao banco dos réus. O Chile teve centenas de condenados, enquanto na Argentina a cifra superou a casa de milhares. “São países que instalaram comissões para apurar os crimes imediatamente após o fim do regime”, afirma Gabrielle Abreu, coordenadora de Memória e Justiça do Instituto Vladimir Herzog. Para ela, o cenário ficou ainda mais complicado com a ascensão do presidente Jair Bolsonaro (PL), que enaltece publicamente a ditadura. Na semana que vem, aliás, o golpe completa seu 58º aniversário. Vale conferir como o presidente fará referências à data. Nos anos anteriores, ele fez questão de celebrar a “revolução”.

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    Na perspectiva atual, nada indica que haverá mudanças na punição dos criminosos. No caso de Carlinhos Metralha, o MPF deve levar o processo ao STJ, mas, pelo histórico, a iniciativa terá pouquíssimas chances de prosperar. Também é difícil imaginar que os agentes vivos, todos com mais de 70 anos, sejam levados aos tribunais. O mais provável é que o Brasil siga com a pecha de ser um país que tem dificuldade para lidar com o passado autoritário e as memórias incômodas dos anos de chumbo da ditadura.

    Publicado em VEJA de 30 de março de 2022, edição nº 2782

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