“Consegui me livrar das ruas”
Leo Motta, 41, conta como foi deixar a vida sem teto e começar a ajudar outros a virar a página da indigência
Todos os dias, ando pelo Rio de Janeiro para tentar ajudar as pessoas que fizeram das ruas sua morada. Como funcionário da Secretaria de Assistência Social da prefeitura, participo das ações para tirar essa gente do buraco e ainda distribuo kits de higiene, alimentos e roupas que arrecado. Mas meu principal instrumento de trabalho, por mais romântico que pareça, é alimentar nesses homens e mulheres que estão na indigência sonhos e ambição de virar a página. É o que muitos perderam. Eu sei bem disso porque já estive no mesmo lugar. Nasci em uma comunidade carente, onde sobravam bocas de fumo e faltavam serviços básicos. Minha mãe era alcoólatra e meu pai nunca esteve presente. Acabei indo morar com meus avós. Tive uma infância simples, porém cheia de afeto e até algum luxo na geladeira. Tudo mudou, porém, quando minha avó morreu, e eu tive de voltar a viver com minha mãe. Com rédeas soltas e pouco incentivo, levei a escola na flauta e me dediquei àquilo que realmente gostava: baladas, garotas e maconha.
Não demorou para a primeira namorada engravidar. Fiz bicos para sustentar o bebê, mas como só queria saber de farra, ela me abandonou. A história se repetiu pouco depois. Nova mulher, novo filho e quase nenhum amor. Me separei, ela não aceitou e cometeu o mais bárbaro dos atos: por vingança, matou nosso filho, de 6 meses. Acabou comigo. Me enterrei na cocaína e minha vida era uma montanha-russa. Achei que tudo ia melhorar quando consegui ficar três anos sem usar entorpecentes. É duro sustentar essa situação, e veio a recaída. Após três demissões, por chegar ao trabalho sob o efeito de drogas, minha terceira mulher também me largou. Foi aí que me entreguei ao crack, tive uma overdose e fui internado. Ninguém me aguentava mais. E assim, por falta de propósito e sem um solo firme, acabei nas ruas, em 2016.
A vida sob as marquises o faz perder a noção de dignidade. Tentei sobreviver catando latinhas, mas o dinheiro era pouco. E entrei na ciranda de pedir esmola. Você se desumaniza, se sente bicho. Uma vez, uma mulher cuspiu em mim quando lhe pedi um pão. O segurança de um boteco me deu um copo d’água cheio de sal num momento em que eu estava sofrendo de sede. Ainda me ameaçou com uma arma. Queria desesperadamente mudar de vida. Pensei: “Você já teve uma casa, com família e café da manhã, precisa reagir”. Foi nessa fase de muita dor que me lembrei de uma instituição que auxilia pessoas nessa situação. E lá descobri que a minha dependência química era uma doença sem cura, mas havia tratamento. Procurei um centro de reabilitação. Fiquei 224 dias e fiz 896 refeições ali. Ninguém entendia o porquê de contar as vezes em que me alimentava. Tem a ver com o valor que dava àquela oportunidade, depois de tanto cuspe na cara e seis meses nas ruas.
E minha vida começou a dar uma guinada. Arranjei um bom emprego de garçom e, um dia, indo para o trabalho, o ônibus parou perto de uma cracolândia. Um homem gritou: “Ali morrem dez por dia e logo chegam mais vinte”. Bateu forte. Precisava ajudar aquela gente. Criei então uma página no Facebook e passei a registrar relatos da minha experiência. Diversas pessoas cujos parentes estavam no fundo do poço passaram a me procurar. Achei que era o caso de dar um segundo passo, escrevendo um livro, que lancei na Bienal do Rio e me rendeu o convite para trabalhar na Secretaria de Assistência Social, há pouco mais de um ano. Estou agora às voltas com um novo livro, porque o que não falta é história sobre minha existência na rua e como superei o pior. Hoje, estou em um relacionamento estável e tive mais um filho. Nenhum deles tem mais vergonha de mim. Sabem que me cuido e me dedico aos outros. Na indigência, a pessoa acha que não tem mais direito a sonhar. Pois está errada.
Leo Motta em depoimento dado a Adriana Cruz
Publicado em VEJA de 20 de julho de 2022, edição nº 2798