Nos últimos dias, o professor de economia Ely Mattos, da PUCRS, trocou as planilhas pelas panelas e passou a cozinhar diariamente para quase 300 desabrigados. Foi também nesse período que a nutricionista Roberta Vargas reuniu apoio para transformar um prédio comercial na zona norte de Porto Alegre, livre de inundações, em residência para quase 100 crianças autistas. Empresários como Alexandre Birman também engordaram a corrente de socorro. No caso dele, que é CEO da Arezzo&Co, gigante do setor de moda, o esforço consistiu em alugar imóveis e reservar quartos de hotel para acolher os funcionários da empresa que ficaram desabrigados, além de entregar 2 400 kits de limpeza, higiene e cestas básicas.
Em meio à destruição provocada pelas enchentes no Rio Grande do Sul, eles são exemplos do incansável trabalho que vem sendo realizado por um verdadeiro exército de voluntários, movidos pelo espírito de ajuda ao próximo e senso de urgência, que se formou na esteira da tragédia. A rede de apoio se alastrou para além dos limites do Sul e acende uma luz no fim do túnel para o estigma de um país à mercê da “lei de Gérson”, segundo a qual o mais importante é levar vantagem em tudo. No lugar do individualismo a qualquer custo, o que se vê agora é uma enxurrada de solidariedade de alcance e proporções inéditas na história brasileira.
Somente o cadastro oficial da Defesa Civil do Rio Grande do Sul soma hoje mais de 50 000 pessoas dispostas a ajudar nas mais diversas ações, como seleção, triagem e entrega de doações. A Secretaria Estadual da Saúde também recebeu 37 500 contatos de profissionais da área (sendo 4 300 médicos e 10 000 psicólogos) prontos a dedicar parte de seu tempo para atender as 615 363 pessoas que foram obrigadas a deixar suas casas. Até a tarde de quinta-feira 16, 77 199 (número que representa quase o dobro da população de Gramado, principal ponto turístico do estado) estavam em 839 abrigos públicos e privados espalhados por 103 dos 497 municípios gaúchos. Desafio que exige não só mão de obra, mas material e recursos financeiros, quesitos nos quais os brasileiros também têm se superado. Em quinze dias, o Pix oficial do governo gaúcho arrecadou 104,7 milhões de reais, e apenas a ECT (Empresa Brasileira de Correios) já recebeu mais de 9 000 toneladas em alimentos, água, produtos de limpeza, ração para animais e roupas.
As doações partiram de todas as 27 unidades da federação, seja por meio dos governos estaduais, das prefeituras ou de organizações da sociedade civil. A ajuda também veio do exterior — Argentina, Chile, Colômbia, Estados Unidos e Uruguai já deram apoio ao Rio Grande do Sul, enviando recursos financeiros e até purificadores de água. A comunidade brasileira em Portugal arrecadou mais de 200 toneladas de mantimentos. O Vaticano anunciou que irá destinar 100 000 euros para auxiliar as vítimas. Celebridades internacionais, como a atriz americana Viola Davis, a cantora Beyoncé e as bandas de rock Metallica e AC/DC, chamaram atenção para a tragédia e divulgaram canais de doação nas redes sociais. No futebol, Neymar disponibilizou um avião para o envio dos mantimentos. Outro boleiro, Raphinha, da seleção brasileira e do Barcelona, exibiu durante um jogo do time uma camiseta com uma mensagem solidária às vítimas das enchentes em seu estado natal. Em outro recado comovente, o Cristo Redentor apareceu vestido com as cores da bandeira gaúcha.
No caso de quem está atuando diretamente no Sul, os esforços iniciais consistiram no salvamento e nos primeiros socorros, a exemplo das ações dos surfistas Pedro Scooby e Italo Ferreira, que usaram jet skis para resgatar pessoas e animais, e da solidariedade das médicas Thelma Assis e Amanda Meirelles, vencedoras do reality show Big Brother Brasil, voluntárias em hospitais do estado. Nos últimos dias, o foco maior da energia foi direcionado ao acolhimento e ajuda aos flagelados. Nos boletins divulgados pelo governo de Eduardo Leite (PSDB), a catástrofe afetou mais de 2 milhões de gaúchos. Após duas semanas de atendimento unificado, estratégias específicas começam a ser implementadas, como abrigos destinados a receber mulheres e crianças ou famílias que tenham animais de estimação. Na linha de frente em Canoas, vizinha a Porto Alegre, a advogada Marianne Calixto foi a responsável pela abertura do primeiro espaço dedicado à população feminina, com destaque para gestantes. Começou a funcionar no dia 8 e já amparou sessenta pessoas. “Pensamos na prevenção dos casos de assédio”, explica. Com mais de 80% do território inundado pelas cheias, Canoas dispõe hoje do maior abrigo do estado. São cerca de 6 000 acolhidos no campus da Universidade Luterana do Brasil (Ulbra). A demanda por lá é tanta que o governo negocia com a Agência da ONU para Refugiados (Acnur) a instalação de estruturas temporárias usadas como moradias em desastres no mundo inteiro.
Repletos, os abrigos dependem de doações para tudo. Colchões, cobertores, produtos de higiene pessoal, roupas, alimentos e água viraram ouro em meio ao caos. A boa notícia é que o apelo por ajuda tem surtido efeito. Comércios, indústrias, escolas, postos de saúde, shoppings, igrejas e até mesmo aeroportos tornaram-se ponto de coleta de doações em todo o país, tendo instituições públicas ou privadas do Rio Grande do Sul como destino. Em Porto Alegre, o Centro Logístico da Defesa Civil estadual virou uma espécie de estoque central, onde alimentos doados têm a embalagem e a validade checadas antes de ser catalogados e armazenados. “A gente precisa fazer uma triagem de tudo que chega. Pedimos, por exemplo, alimentos com ao menos trinta dias antes do prazo de validade se encerrar”, explica a tenente Sabrina Ribas, da Defesa Civil. Mas nem tudo é monitorado pelo governo, já que boa parte das doações tem chegado ao estado por caminhões e voos privados, fretados por empresas ou associações, com endereço predeterminado. O Movimento União BR, que inclui 68 empresas e entidades, já arrecadou mais de 20 milhões de reais para o Sul e entregou mais de 1 milhão de itens em ao menos sessenta cidades. Em paralelo, campanhas se espalham por comércios do país para incentivar a compra de produtos gaúchos como forma de reativar a economia local.
Infelizmente, em meio a essa rede do bem, surgiram relatos que fazem lembrar o pior da cultura da “lei de Gérson”, a exemplo de furtos e saques em estabelecimentos comerciais e casas alagadas. Na quarta 15, as polícias de São Paulo e do Rio Grande do Sul prenderam suspeitos de simular contas oficiais do governo gaúcho para recebimento de doações em Santo André, no ABC paulista. Já nas cidades afetadas foram presas mais de cinquenta pessoas, onze delas por crimes cometidos em abrigos, incluindo casos de violência sexual. Algumas subcelebridades e influenciadores digitais viram na tragédia uma oportunidade de ganhar visibilidade e engajamento. O vencedor do BBB 2024, Davi Brito, compartilhou uma foto em que sorri ao lado de uma fila de vítimas das enchentes. A inoportuna polarização ideológica também se manifestou nas redes sociais. Grupos de diferentes espectros políticos utilizam o desastre para atacar adversários e disputar os possíveis ganhos eleitorais por ações de auxílio. Enquanto acusa o presidente Lula de explorar a catástrofe (veja a matéria na pág. 28), a turma da direita radical dispara notícias falsas sobre a atuação do governo federal e tenta disseminar a narrativa de que a União tem sido omissa.
Não poderia haver discussão mais inútil e equivocada. O poder público tem papel central na recuperação do estado e no atendimento às vítimas (151 mortes foram confirmadas e há 104 desaparecidos até a contagem feita na quinta, 16). Na quarta, Lula e dez ministros desembarcaram em Porto Alegre para divulgar a decisão de pagar 5 100 reais via Pix a 240 000 famílias atingidas pelas enchentes. O benefício tem custo estimado em 1,2 bilhão de reais e se soma a uma conta que chega a 62 bilhões em ações federais. Segundo o governador Eduardo Leite — que destinou 276,5 milhões até aqui para ajuda aos municípios e a determinados serviços, como saúde e educação —, serão necessários ao menos 19 bilhões de reais para a reconstrução apenas das estruturas físicas.
A ação dos voluntários reforça o socorro necessário neste momento e é um exemplo do espírito solidário do povo brasileiro, que se manifesta com vigor em grandes tragédias, como nas enchentes do Litoral Norte paulista de 2023, que provocaram 65 mortes. “A empatia se materializa na população a partir de imagens de grande impacto, como resgates de crianças e animais e vistas de cidades inteiramente alagadas”, afirma o cientista político Fernando Schüler, professor do Insper e colunista de VEJA. Por outro lado, embora ainda predomine o viés emotivo e pontual nas contribuições, existem sinais de que a cultura da solidariedade vem ganhando espaço no país, especialmente entre a chamada geração Z (entre 18 e 27 anos de idade). Em 2022, 84% dos jovens realizaram algum tipo de auxílio, seja por doações, trabalho voluntário ou ajuda a estranhos, segundo a pesquisa Doação Brasil, coordenada pelo Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social (Idis). Nessa faixa de idade, um quarto dos doadores se diz motivado pelas redes sociais a contribuir, e 74% têm percepção positiva sobre o trabalho das ONGs. “Essa parcela da população já entende que fortalecer organizações civis cria uma sociedade mais justa e igualitária”, afirma a CEO do Idis, Paula Fabiani.
O atual modelo de doações institucionais pode ser uma invenção contemporânea, mas a noção de solidariedade como pilar da civilização é bem antiga. Um divisor de águas no contexto da mobilização social foi a criação do primeiro corpo de bombeiros voluntários da Filadélfia, em 1736 — seu idealizador foi Benjamin Franklin, um dos “pais fundadores” dos Estados Unidos. A chamada Brigada do Balde era composta por 26 cidadãos, unidos pela causa de combater incêndios como aquele que, seis anos antes, havia devastado dezenas de armazéns às margens do Rio Delaware. O sucesso da iniciativa, além de motivar o rápido surgimento de brigadas voluntárias pelo país, serviu como demonstração do poder alcançado por civis organizados sob uma bandeira comum.
Embora o Brasil ainda esteja longe de ter uma cultura solidária tão arraigada, a rede que se formou ao redor do desastre do Sul mostra um país no caminho desse ideal. Os voluntários seguem no front para oferecer dignidade a quem viu a água arrastar o resultado de uma vida inteira de trabalho e de memórias. Passados quase vinte dias do início das chuvas, e tendo em vista a previsão de que novas tempestades ainda estão por vir, o desafio agora é manter o ânimo. “O importante é a gente ser útil em meio a tudo isso”, afirma o professor cozinheiro Ely Mattos. Lição sábia: o esforço de socorro não pode mesmo cessar — e, ao final, que não caiam no esquecimento essas preciosas lições de solidariedade.
Publicado em VEJA de 17 de maio de 2024, edição nº 2893