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Crescem no país os casos de tolerância e até de apologia ao nazismo

Ao defender a criação de um partido nazista, influenciador digital mostra como as redes estimulam o ódio

Por André Sollitto Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO , Sabrina Brito Atualizado em 4 jun 2024, 12h41 - Publicado em 11 fev 2022, 06h00
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  • “Eu acho que tinha que ter o partido nazista reconhecido por lei. (…) A questão é: se o cara quiser ser um antijudeu, eu acho que ele tinha o direito de ser.”

    Preste atenção nas frases que estão em destaque acima. Leia uma vez. Examine novamente o texto para ter certeza sobre o que o autor quis dizer. Para ficar bem claro: o que foi dito ali, sem meias-palavras ou ambiguidades, é que não há nada de errado em perseguir judeus. De novo, agora aqui: “Se um cara quiser ser um antijudeu, eu acho que ele tinha o direito de ser”. E então: “Eu acho que tinha que ter o partido nazista reconhecido por lei”. As pavorosas afirmações que fazem apologia ao nazismo não foram obra de um desvairado anônimo, o que já seria suficientemente asqueroso. Elas, ao contrário, pertencem a Bruno Aiub, conhecido como Monark, uma dessas celebridades que a internet produz em ritmo alucinante. Monark é apresentador do Flow Podcast, programa de entrevistas com personalidades de diversas áreas e que, só no YouTube, é seguido por 3,6 milhões de pessoas. Estavam ao lado dele os deputados Kim Kataguiri, do DEM, e Tabata Amaral, do PSB. Tabata respondeu à altura. “A liberdade de expressão termina quando coloca a vida do outro em risco”, disse. Kim ecoou a barbaridade de Monark ao afirmar que considera errado a Alemanha ter criminalizado o nazismo depois da II Guerra Mundial.

    A defesa desavergonhada do nazismo em um programa campeão de audiência expõe uma face sombria do país. É disso que se trata: sob o pretexto da liberdade de expressão, parte da sociedade brasileira se sente autorizada a aplaudir a praga da intolerância. “Precisamos reconsiderar o que é discurso de ódio e o que é liberdade de expressão”, disse a VEJA o historiador americano Edwin Black, que vendeu 2 milhões de livros sobre o assunto. “O discurso de Monark reflete três camadas: ignorância, ingenuidade e arrogância. Isso é perigoso.”

    TIRANIA - Elie Wiesel no campo de concentração Buchenwald: “A neutralidade ajuda o opressor” -
    TIRANIA - Elie Wiesel no campo de concentração Buchenwald: “A neutralidade ajuda o opressor” – (Rue des Archives/AFP)

    Episódios recentes confirmam que o vale-tudo espalhou-se como vírus, inclusive nas esferas que deveriam combatê-lo, como os governos. Em 2020, o então secretário especial de Cultura Roberto Alvim fez um pronunciamento em que mimetizava falas, postura e até o cenário de um discurso do ministro da propaganda na Alemanha nazista, Jo­seph Goebbels. Em março do ano passado, Filipe Martins, assessor especial do presidente Jair Bolsonaro, reproduziu um gesto clássico dos supremacistas brancos em sessão no Senado. Em junho, a promotoria pediu para arquivar o caso de um professor de história de Pomerode, em Santa Catarina, que decorou sua piscina com uma suástica — e foi obrigado a descaracterizar o símbolo. Um dia depois da estultice de Monark, o escritor Adrilles Jorge fez uma saudação nazista em transmissão por vídeo em um programa da TV Jovem Pan.

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    Ao contrário do silêncio incômodo de outros tempos, a reação foi avassaladora — e esse deve ser o comportamento permanente de toda sociedade civilizada. A comunidade judaica apontou o absurdo das declarações. Juristas e personalidades se juntaram ao coro de descontentamento. Ao menos trinta convidados do programa de Monark, como a advogada Gabriela Priolli, o rapper MV Bill e o ator Dan Stulbach, pediram que os episódios em que apareciam fossem retirados do ar. Em paralelo, patrocinadores como Amazon Prime, Puma e iFood anunciaram o rompimento do contrato com o estúdio responsável pelo Flow. Nas redes sociais, o tema recebeu o devido escrutínio, e a indignação deu o tom nas postagens. Em poucas horas, um fenômeno de audiência foi esvaziado de apoio.

    Monark e Adrilles acabaram demitidos e, como sempre ocorre nessas situações, deram desculpas esfarrapadas para justificar suas ações. O influencer disse que estava bêbado. O escritor afirmou que seu gesto foi interpretado de maneira equivocada, exatamente o mesmo argumento que Alvim e Martins usaram tempos atrás. Tra­ta-se de idêntico modus operandi. Em muitas ocasiões, a estratégia dessas pessoas é acenar primeiro para a estética nazista e depois recuar. Assim, chamam atenção para suas deturpadas ideias, mas, pressionadas, fingem não ter tido intenção maléfica.

    ORIGEM DO MAL - Adolf Hitler, líder do Partido Nazista, nos anos 1930: ódio contra judeus, negros e homossexuais -
    ORIGEM DO MAL - Adolf Hitler, líder do Partido Nazista, nos anos 1930: ódio contra judeus, negros e homossexuais – (corbis/Getty Images)

    Uma análise apressada pode confundir a pressão contra os intolerantes como mais uma forma de cancelamento, o fenômeno das redes sociais que ataca aqueles que vão contra quem pensa de maneira diferente. Chico Buar­que foi cancelado depois de afirmar que não cantaria mais Com Açúcar, com Afeto, música de sua autoria considerada, pelo olhar de hoje, machista. Um lado definiu a escolha do compositor como autocensura, enquanto as feministas aplaudiram a decisão. Em inúmeros casos, como no exemplo de Chico, o cancelamento é um exagero, quase sempre cometido por radicais que não aceitam o livre debate de ideias. Ou seja: mais um fenômeno dispensável que a internet provoca.

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    Quando se defende o nazismo, porém, a história é completamente diferente. É algo grave, uma deturpação absurda do conceito de liberdade de expressão.“Quem prega a existência de um partido nazista está praticando um crime”, diz Ariel de Castro Alves, advogado especializado em direitos humanos e presidente do Grupo Tortura Nunca Mais. Repita-se: é um crime. A mesma regra deveria ser aplicada se alguém sugerisse a criação de um partido racista ou um que defendesse uma posição secundária para as mulheres na sociedade. Alves lembra que o artigo 20 da lei federal 7 716, de 5 de janeiro de 1989, considera crime “praticar preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”.

    SIMBOLISMO - Manifestantes neonazistas alemães: antiga bandeira imperial é usada para driblar a proibição da suástica -
    SIMBOLISMO - Manifestantes neonazistas alemães: antiga bandeira imperial é usada para driblar a proibição da suástica – (eon Kuegeler/Anadolu Agency/Getty Images)

    Defensores de Monark disseram que suas declarações foram resultado do despreparo. De todo modo, é inaceitável que em 2022, com pleno acesso ao conhecimento, ou depois de um julgamento como o de Nuremberg — que expôs, ao fim da II Guerra, em 1945, horrores da Alemanha de Adolf Hitler —, seja preciso explicar o que foi o nazismo. E, no entanto, episódios inaceitáveis como o do influencer despreparado exigem algum didatismo. É preciso lembrá-lo para não esquecer. Tra­ta-se de um dos regimes mais cruéis e criminosos da história da humanidade. Frustrados com o experimento democrático da República de Weimar (1918 a 1933), instaurada na Alemanha logo após a I Guerra Mundial, os alemães enxergaram em Hitler o líder que lhes devolveria a sensação de segurança e normalidade, além de combater o desemprego e a inflação. Ao virar chanceler, em 1933, ele tocou fogo no prédio do Parlamento, acabou com os demais partidos, censurou a imprensa e deu início ao período de horror que envergonha a Alemanha até hoje, promovendo um conflito global. Odiava negros, ciganos, homossexuais, deficientes físicos e judeus. Sob seu comando, a “solução final”, baseada em ações como o envenenamento em câmaras de gás, passou a ser um plano administrativo disseminado entre os altos escalões, que resultaria na morte de 6 milhões de judeus.

    BANALIDADE - Suástica na piscina: decoração extremista em Santa Catarina -
    BANALIDADE - Suástica na piscina: decoração extremista em Santa Catarina – (Polícia Civil de Santa Catarina/Divulgação)
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    Primo Levi (1919-1987), escritor italiano sobrevivente do campo de concentração de Auschwitz-Birkenau, foi uma das vozes a descrever o que passara: “Rasparam os nosso cabelos, tatuaram no braço números em ordem progressiva, tiraram nossas roupas e nos revestiram com trapos imundos listrados: não somos mais homens”. Não há, portanto, de modo algum, como reescrever esse capítulo, tentando jogá-lo no ventilador de absurdos alimentados pelas redes sociais, como se em nome de uma suposta liberdade de expressão valesse tudo. O nazismo não pode ser tolerado ou permitido. Assim como não se pode sair por aí matando pessoas, cometendo estupros ou roubando seus vizinhos. Existem, sim, limites que jamais serão ultrapassados.

    No Brasil, o embaralhamento que autorizou comentários idiotas como o de Monark, muitas vezes, se repetiu de forma irresponsável, dentro do próprio governo. Em 2019, o então ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, disse numa rede social — e onde mais poderia ser? — que nazismo e fascismo eram movimentos de esquerda. Jair Bolsonaro ecoou a bobagem numa visita a Israel, e ambos foram severamente criticados pela comunidade internacional ao criarem uma narrativa de fantasia. O nazismo de Hitler e o fascismo de Benito Mussolini nasceram depois da I Guerra Mundial em oposição ao socialismo marxista que saíra vitorioso na Revolução Russa, em 1917 — mas também contra o capitalismo liberal que vigorava nos EUA e em boa parte da Europa Ocidental. Daí a confusão alimentada agora por quem pretende distorcer os registros: evidentemente, o nazismo não era de esquerda, mas tinha olhar crítico ao capitalismo, ponto de vista comum aos marxistas.

    CARICATURA - O ex-secretário de Cultura Roberto Alvim: cópia de pronunciamento do ministro da Propaganda de Hitler -
    CARICATURA - O ex-secretário de Cultura Roberto Alvim: cópia de pronunciamento do ministro da Propaganda de Hitler – (./Reprodução)

    Defender um regime criminoso como esse revela, antes de tudo, ignorância. “Se o nazismo ou o neonazismo firmassem raízes no Brasil, a maior parte dos brasileiros seria exterminada”, resume o historiador Edwin Black. E, contudo, uma janela de apoio a ideias que deveriam deixar de circular parece ter se aberto no país. A antropóloga Adriana Dias se dedica a pesquisar o tema no Brasil desde 2002 e diz que, no início, encontrou poucas células nazistas. Hoje, existem ao menos 530 nú­cleos extremistas que podem chegar a mais de 10 000 pessoas. Entre 2019 e 2020, o número de inquéritos abertos pela Polícia Federal sobre apologia ao nazismo cresceu 59%. Nem mesmo a Alemanha, onde a exibição das suásticas é banida até das capas de livros — como aconteceu com a edição do romance Complô contra a América, de Philip Roth —, escapa desse movimento. O Alternativa para a Alemanha, partido que abraça teses nazistas, se tornou o terceiro maior do Parlamento europeu nas eleições federais de 2017.

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    INSPIRAÇÃO - Joseph Goebbels: mentor da propaganda veiculada às massas -
    INSPIRAÇÃO - Joseph Goebbels: mentor da propaganda veiculada às massas – (Atelier Bieber/Nather/Bildarchiv Preußischer Kulturbesitz/.)

    Não há nenhuma dúvida de que a reverberação do discurso de ódio tem na internet uma aliada fundamental. O escritor Umberto Eco definiu a questão em um comentário que se tornaria famoso: “O drama da internet é que ela promoveu o idiota da aldeia a portador da verdade”. Eco não viveu o suficiente — ele morreu em 2016 — para descobrir que os idiotas agora têm microfones poderosos à disposição. “Há uma amplificação muito evidente nessas plataformas, que expandem discursos ofensivos”, diz Thiago Amparo, professor de direito internacional da FGV. O escritor americano Andrew Keen chama o fenômeno de “culto do amador”. Com a internet, qualquer palerma desprovido de conhecimento (inclusive os que defendem o terraplanismo) é capaz de arregimentar multidões, ocupando um espaço que deveria pertencer, na ordem legítima da sociedade, a um especialista.

    SEM PUDOR - Adrilles Jorge (no centro), na Jovem Pan: demitido após saudação -
    SEM PUDOR - Adrilles Jorge (no centro), na Jovem Pan: demitido após saudação – (./Reprodução)

    Se muitos influencers, youtubers e podcasters são amadores que disseminam ideias vulgares, por que personalidades se dispõem a conversar com eles? Eis o outro lado da moeda: a legitimação dessa turma. Participantes ilustres se curvam a esses programas porque estão atrás de visibilidade, a mesmíssima premissa que leva empresas a despejar milhões de reais em patrocínios. Sem nenhuma tradição nem conhecimento sobre política, o podcast Flow recebeu os presiden­ciáveis Sergio Moro, João Doria e Ciro Gomes. Lula foi entrevistado no podcast rival, Podpah. Mesmo detentores da mais profunda ignorância e capazes dos comentários mais absurdos, eles acabam ganhando a chancela de uma camada da população, seus líderes, que deveria ignorá-los.

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    Execrável por qualquer ângulo que se olhe, o crime cometido por Monark uniu o pior dos dois mundos: a gritaria das redes sociais, em que vale tudo em nome de cliques, e a louvação da ignorância, que prospera no Brasil atual. O escritor romeno Elie Wiesel (1928-2016), Nobel da Paz de 1986, sobreviveu aos horrores dos campos de concentração de Auschwitz e Buchenwald e assumiu a tarefa de denunciar a barbárie, relatando sua experiência no livro A Noite. Talvez a sua principal lição seja a de que é preciso escolher um lado. “Neutralidade ajuda o opressor”, escreveu. Para o filósofo austríaco Karl Popper (1902-1994), a humanidade não deve tolerar os intolerantes. Eles precisam ser combatidos. Agora e para sempre.

    Publicado em VEJA de 16 de fevereiro de 2022, edição nº 2776

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