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Crise climática e crime: múltiplos incêndios lançam sinal de alerta no Brasil

Diferentemente da maior parte do mundo, os incêndios no país são causados, na maior parte, pela ação humana

Por Valéria França Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 30 ago 2024, 11h26 - Publicado em 30 ago 2024, 06h00

O que era o “pulmão do mundo” se tornou uma imensa chaminé a despejar sujeira na atmosfera. Na Amazônia, incêndios ganharam uma dimensão nunca antes vista, espalhando-se pela floresta mês a mês e manchando a principal vitrine ambiental do governo. Desde o início do ano, a região perdeu para o fogo mais de 4 milhões de hectares, uma área equivalente a 35 cidades do Rio de Janeiro. Metade dessa extensão queimou em agosto, mês de calamidades não só no N­orte. No Centro-­Oeste, as queimadas voltaram a se intensificar, consumindo porções antes intactas do Pantanal. E até o interior de São Paulo ficou em chamas, paralisando estradas, indústrias e escolas. As matas e as cidades sofrem em um cenário em que atividades supostamente criminosas se misturam aos efeitos do aquecimento global.

Em Mato Grosso do Sul, um refúgio ecológico de 53 000 hectares, com uma das maiores concentrações de vida selvagem do continente, colapsou. Durante o combate ao fogo nas redondezas de Caiman, os brigadistas se emocionaram ao encontrar carbonizados dois filhotes de onça-pintada, símbolo da biodiversidade brasileira. A morte de um animal que ocupa o topo da cadeia alimentar — e que, portanto, teria agilidade e força para escapar de grandes ameaças — é um sintoma da gravidade da situação. Eles não são as únicas vítimas, claro. A fumaça proveniente do Pantanal e da Amazônia se espalhou pelo Brasil, por meio de um corredor de vento que se estendeu de Manaus até Porto Alegre, derrubando de vez a qualidade do ar.

mapa queimadas

O estado mais rico do país também virou epicentro da crise. No último fim de semana, regiões agrícolas de São Paulo foram alvo de incêndios que perderam o controle. Em um único dia, focos de queimada surgiram em cinquenta municípios no intervalo de pouco mais de uma hora — foram 1 886 pontos atacados pelo fogo. A explosão de ocorrências no estado transformou agosto no mês com o maior número de incêndios da história, segundo as medições do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. No acumulado do ano, notificaram-se 5 280 episódios de queimada.

O caos levou o governo estadual a criar um gabinete de crise, que mobilizou 7 500 brigadistas, helicópteros, aeronaves, drones e outros veículos. Rodovias tiveram de ser fechadas para preservar a segurança da população. Ainda assim, houve duas mortes e 66 pessoas ficaram feridas. Em Ribeirão Preto, região mais afetada, as aulas chegaram a ser suspensas. Ao todo, 30 000 propriedades privadas foram atingidas, sendo 80% delas de produtores do agronegócio. O governador Tarcísio de Freitas decretou situação de emergência em 45 cidades por 180 dias. A cerca de 700 quilômetros de distância, até a capital, Brasília, começou a semana com o céu encoberto pela fumaça de origem paulista.

CÉU ENCOBERTO - Brasília: fumaça das queimadas paulistas fechou o tempo
CÉU ENCOBERTO - Brasília: fumaça das queimadas paulistas fechou o tempo (Joédson Alves/Agência Brasil)

A situação de São Paulo, no entanto, se descola do cenário clássico de incêndios, aquele em que as influências climáticas têm maior peso no desastre. A ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, chegou a compará-la ao “Dia do Fogo”, no Pará, em 2019, quando, em uma ação orquestrada, motoqueiros incendiaram áreas verdes para desmontar a fiscalização e o monitoramento na Amazônia. A ministra pediu investigação da Polícia Federal, que já abriu 31 inquéritos para apurar incêndios criminosos. Já há pelo menos meia dúzia de suspeitos presos que, se condenados, podem pegar de dois a quatro anos de detenção.

Até mesmo os ambientalistas e pesquisadores acreditam em uma articulação criminosa. “No estado, as condições do tempo não estavam propícias para um evento tão devastador”, diz Humberto Barbosa, coordenador do Laboratório de Análises e Processamento de Imagens de Satélites. Isso porque dois ciclones extratropicais passaram pela região em agosto. O primeiro, no início do mês, derrubou a temperatura e chegou a provocar chuvas. O segundo se manifestou no dia em que começaram as queimadas e baixou ainda mais a média do termômetro. Mesmo assim, as imagens colhidas por satélites atestam um maior número de focos de incêndio após a passagem do ciclone. Indício de que o elemento humano entrou em cena de maneira pronunciada.

SECA EXTREMA - Pantanal: região ficou com cara de sertão... e também queimou
SECA EXTREMA - Pantanal: região ficou com cara de sertão… e também queimou (Buda Mendes/Getty Images)

De fato, o período de chuva ficou mais curto, e o de seca, mais longo, na maior parte do país em 2024 — a exceção foi, tragicamente, a Região Sul. Houve recordes de baixa umidade do ar, de acordo com registros do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais. “Quando isso acontece, a vegetação fica mais inflamável”, afirma o cientista ambiental Carlos Nobre, da Universidade de São Paulo (USP). De janeiro a agosto, os focos de queimada passaram a casa dos 100 000 pelo território nacional, superando em 43% os mapeados no mesmo período do ano passado. A Amazônia concentrou praticamente a metade dos incêndios, mesmo com a diminuição do desmatamento diagnosticada em setenta municípios.

OPERAÇÃO - Suporte aéreo: aviões e helicópteros apoiam brigadistas no combate ao fogo em regiões de difícil acesso
OPERAÇÃO - Suporte aéreo: aviões e helicópteros apoiam brigadistas no combate ao fogo em regiões de difícil acesso (Marcelo Camargo/Agência Brasil)

A situação alarmante é também consequência das condições climáticas atípicas de 2023. Entre elas, o El Niño, fenômeno que aquece as águas do Oceano Pacífico a cada sete anos e muda o fluxo de correntes marítimas, potencializando temporais e secas mundo afora. Em poucas palavras, ele deixou o clima ainda mais extremo. O último relatório da Unesco a respeito ressalta que os mares bateram o recorde histórico de temperatura. Se a média global ainda não superou os limites definidos pelo Acordo de Paris, algumas águas, como as do Mar Mediterrâneo e do Atlântico Tropical, já ultrapassaram as linhas de segurança. Isso influencia o ecossistema como um todo, e fato é que, no fim do ano passado, a média de temperatura do planeta chegou a escalar mais de 2 graus acima dos níveis pré-industriais — o ponto máximo estipulado pelo acordo internacional para evitar a debacle planetária. “Vivemos um período de latência de eventos preocupantes”, diz Ane Alencar, diretora de ciência do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia. Na prática, isso significa novas quebras de recorde de temperatura, mais ondas de calor, incêndios incontroláveis etc. Pelas contas do climatologista Maximiliano Herrera, quinze máximas meteorológicas foram superadas no planeta apenas nos sete primeiros meses de 2024. O continente mais afetado pelas altas temperaturas foi a África (veja abaixo), também palco de queimadas.

mapa queimadas

Ocorre que, diferentemente da maior parte do mundo, os incêndios no Brasil são causados, na maior parte, pela ação humana. Não exatamente como parece ter ocorrido no interior de São Paulo, mas pelo manejo do fogo, muito usado na limpeza de campos e pastagens. “É uma prática cultural”, diz Suely Araújo, coordenadora de políticas públicas do Observatório do Clima. Só que feita de forma desordenada e perigosa. Embora seja necessário ter autorização para produzir queimadas com esse intuito, o Brasil padece do desrespeito à lei e da falta de fiscalização. O Ibama, que se ocupa somente de terras federais, sequer tem contingente suficiente para dar conta dessa missão.

Esboça-se uma reação após o noticiário ter esquentado. O ministro Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal, determinou que o governo reforce ao máximo as equipes de combate ao fogo na Amazônia e no Pantanal no prazo de quinze dias. Em paralelo, o Diário Oficial da União publicou uma portaria que autoriza o Centro Especializado Prevfogo a contratar brigadas para prevenção e ataque aos incêndios. A tarefa é urgente, porque, em um círculo vicioso, a degradação ambiental imposta pelas queimadas favorece o aumento da temperatura — não à toa, as áreas com a maior elevação térmica coincidem com aquelas em que há mais intervenção na terra. “Inúmeras ondas de calor não são naturais, mas provocadas pela ação humana por meio da fumaça das queimadas”, diz Barbosa. E a subida do termômetro, por sua vez, alimenta a disseminação das chamas , que aquecem ainda mais o ambiente. Para desatar esse nó em ebulição e evitar um ponto de não retorno climático, será preciso rever toda uma cadeia de práticas ainda hoje dominantes — da cultura incendiária ao uso de combustíveis fósseis. Do contrário, respiraremos ares infernais.

Publicado em VEJA de 30 de agosto de 2024, edição nº 2908

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