“Demoraram a me aceitar como eu sou”, diz primeira PM trans de SC
Aos 43 anos, Priscila Diana fala do doloroso caminho até ser reconhecida
Nasci em uma família humilde e ultraconservadora, no interior do Paraná. Meu pai era ferroviário e minha mãe, dona de casa. Se erguesse um pouco a voz e não os chamasse de senhor ou senhora, eles me repreendiam, naquele estilo de educação bem tradicional. Aos 10 anos, ganhei um urso de pelúcia e meu pai o queimou. “Não é brinquedo para menino”, disse. Eu me sentia diferente dos outros garotos. Queria brincar de boneca e me vestir de mulher. Não entendia o significado disso, mas mesmo assim escondia esses desejos, sabendo ser algo proibido. Quando meus pais e dois irmãos saíam, experimentava roupas e maquiagens da minha mãe. Um dia, ela me flagrou. Chorei o dia inteiro. Tinha certeza de que meu pai me expulsaria de casa. Felizmente, o assunto nunca veio à tona. Crescer naquele ambiente foi complicado e sufocante. Eu me tornei uma pessoa introspectiva. Sexo foi um tabu até os 30 e poucos anos, quando iniciei minha transformação.
Havia muitos militares na família e, para mim, foi natural seguir a carreira de PM. Era boa de tiro, mostrei disciplina e alto desempenho nos treinamentos e me botaram na linha de frente no combate ao crime. Fiz também parte da Força Nacional de Segurança e acabei promovida a sargento, ganhando com isso o respeito de meus colegas. Mas, apesar de bem adaptada a um ambiente tão machista, era como se, naquele corpo, faltasse um pedaço de mim. E passei a procurar informações sobre pessoas transexuais, que havia aos montes na internet: assim tirei da cabeça que eu era uma aberração. Na encolha, sem dizer uma palavra a ninguém, iniciei o processo de transição de sexo por conta própria. Primeiro cresceram peitos e coxas, que eu camuflava quando ia trabalhar. Amarrava faixas apertadas para disfarçar os seios e jamais me expunha sem roupas na frente dos outros.
Fiquei boa em me esconder, mas viver assim é penoso demais — e decidi sair do armário. Em fevereiro de 2020, aos 42 anos, fui ao cartório para alterar meus documentos: carteira de identidade, de motorista, de trabalho. Sabia que tinha direito a isso graças a uma decisão do STF. E assim me tornei Priscila Diana. Do primeiro nome eu sempre gostei; o segundo foi sugestão de uma amiga, que falou: “Diana é a Mulher-Maravilha e você vai ter de brigar com todo mundo”. Estava certa. Quando me reuni com meu comandante, solicitei que fosse tratada por meu novo nome social e, a princípio, ele aceitou. Foi um choque no batalhão. Agora, se falavam mal de mim, eu não ouvia. Houve certa resistência a eu usar o banheiro feminino, mas passou. O pior é que, por nada, trocavam meu nome no cadastro oficial da PM. Cada hora era uma desculpa — um problema no sistema, na Receita Federal —, e a história se prolongava.
Isso me causou grandes constrangimentos. Por exemplo, me impedia de aplicar uma multa de trânsito porque meu nome como policial não batia com o dos meus documentos. Com o tempo, perdi responsabilidades e me designaram para serviços administrativos. Era machismo puro, acobertado por uma aura de falsa tolerância. Decidi então entrar com uma ação na Justiça e me deram autorização para a mudança de identidade na polícia. Ainda assim, demorou. O caso só mudou de figura quando o trouxe a público e, numa prova de que a sociedade está progredindo, consegui, enfim, mudar meu nome na corporação. Agora, me preparo para voltar ao policiamento ostensivo. Minha transformação física não se encerrou, mas, atualmente, sou acompanhada por especialistas, como deve ser. Meu pai ainda me chama pelo nome com o qual me batizou. Eu não o revelo a ninguém. Ele se refere a uma pessoa que não existe mais. Hoje, sou a PM Priscila, com muito orgulho.
Priscila Diana em depoimento a Ricardo Ferraz
Publicado em VEJA de 7 de abril de 2021, edição nº 2732