Dado a permanecer isolado, cheio de manias, recluso como um ermitão, o baiano João Gilberto (1931-2019), o gênio delicado da bossa nova, atraía confusões domésticas — não por maldade, longe disso, mas por andar atrapalhado com as coisas comezinhas. Sabe-se agora, olhando para o passado recente, que tristeza não tem fim. Ele atravessou os últimos anos de vida mergulhado em dívidas e no centro de uma disputa entre os filhos — o músico João Marcelo, a cantora Bebel Gilberto e Luísa, uma jovem estudante. Os motivos: sua interdição judicial e seu único patrimônio, os milionários direitos autorais de uma obra que reinventou o Brasil.
Há quatro anos o inventário se arrasta nos tribunais. Agora, um novo e triste capítulo envolvendo familiares do artista veio à tona, segundo apurou a reportagem de VEJA. A nora, a produtora cultural Adriana Magalhães Hoineff, e sua filha, uma menina de apenas 7 anos, neta de João, são alvo de uma ação de despejo da casa onde moram, na Zona Sul do Rio de Janeiro, por falta de pagamento de aluguel. As condições financeiras precárias podem deixar a garota sem escola, já que as mensalidades de um tradicional colégio carioca, onde ela estuda, também estão atrasadas. Não é o que se poderia esperar do legado de um personagem seminal.
O entrevero tem como pivô um controverso personagem que se aproximou da família pouco antes de João abandonar para sempre o banquinho e o violão. O advogado Gustavo Carvalho Miranda, de 42 anos, se tornou o procurador de um dúplex de 400 metros quadrados e elevador privativo, avaliado em 12 milhões de reais, que pertencia a Adriana e seu primeiro marido, o diretor de TV Nelson Hoineff, que morreu em 2019. O imóvel chegou a sediar festas badaladas, que contaram com a presença do cineasta Francis Ford Coppola e do ator Jesse Eisenberg (de A Rede Social). Logo depois da morte de João, Miranda vendeu a cobertura por um terço do valor, em razão de dívidas de IPTU e condomínio que beiravam 800 000 reais. As bases do contrato — que Adriana diz terem sido feitas sem seu conhecimento — previam pagamentos em parcelas até o ato da escritura, quando ela embolsaria 2,9 milhões como quitação. Até hoje, porém, ela recebeu cerca de 100 000 reais. “Gustavo Miranda nunca me mandou a minuta de compra e venda e ficava repetindo para confiar nele”, diz. “Foi um golpe milimetricamente planejado.” O advogado afirma ter agido dentro da lei, informando cada passo do trato por e-mail. “Nunca houve má-fé ou conluio com ninguém, também fui vítima dessa situação”, responde Miranda, que alega ter sofrido um calote do comprador. “Não recebi sequer todos honorários”, garante.
O caso foi parar na 24ª Vara Cível do Rio, onde a nora de João move uma ação de reintegração de posse que, além do advogado, tem como réus uma corretora, o condomínio e o comprador, o também advogado Fábio Cives, que teve a carteira da OAB suspensa e nunca foi localizado pela Justiça. Nos autos, Adriana diz ter sido “ludibriada por uma verdadeira quadrilha”. Ela conta que a pressionaram a vender o imóvel por valor inferior, alegando que a maré do mercado estava baixa. “Suspeito que fizeram tudo isso para o apartamento ir a leilão e alguém conhecido comprar”, diz ela. Com ou sem conspiração, é fato que dois dias antes da primeira audiência, em maio, o apartamento foi arrematado por 2,8 milhões de reais. “Espero que se faça justiça. Essa pessoa causou grande dano à minha família”, afirma João Marcelo, que está nos Estados Unidos. Em resposta, Miranda processa Adriana e a advogada do casal por calúnia. O advogado ainda ingressou com uma ação contra o filho de João, alegando crime contra a honra por comentários postados em redes sociais.
Miranda foi chamado inicialmente pelo herdeiro para defendê-lo na guerra travada entre os irmãos, na época em que Bebel Gilberto era a responsável legal pelo pai. “O João desenvolveu muita afeição por mim”, diz o advogado. “Ele assinou uma procuração para que eu o representasse na questão da sua interdição.” A amizade entre os dois sempre despertou desconfiança da família, já que Miranda chegou a levar, sem anuência, o ícone da MPB a uma churrascaria quatro dias antes da morte. “Ele arrastou uma pessoa interditada e debilitada e a pôs em constrangedora exposição midiática”, diz Deborah Sztajnberg, atual defensora de Adriana e João Marcelo. Em outro episódio, em 2021, depois de notificação extrajudicial, Miranda entregou ao espólio uma pasta com documentos inéditos, entre cartas, setlists de shows e anotações pessoais que diz ter recebido de presente do músico. O gênio não merecia enredo tão fora de tom.
Publicado em VEJA de 8 de setembro de 2023, edição nº 2858