Uma pergunta ecoou por seis longos anos: quem mandou matar a vereadora carioca Marielle Franco? No domingo 24, dez dias depois do aniversário de sua execução a tiros junto do motorista Anderson Gomes, em um carro no Centro do Rio de Janeiro, a Polícia Federal (PF) finalmente apresentou respostas, e aos nomes dos supostos mandantes acrescentou as motivações. É de virar o estômago, tanto pelos detalhes do crime bárbaro quanto pela exposição sem disfarces, nítida e contundente, da promíscua relação entre bandidos, policiais e autoridades que vigora no estado. Segundo a PF, Marielle foi assassinada a mando de um deputado federal, Chiquinho Brazão, e de um conselheiro do Tribunal de Contas estadual, Domingos Brazão, irmãos acusados de ganhar a vida explorando negócios ilícitos na Zona Oeste do Rio, em conluio com nada menos que o chefe da Polícia Civil na época, Rivaldo Barbosa. Em público, ele confortava a família e prometia rápida solução do caso, enquanto nos bastidores agia para garantir a impunidade dos algozes.
A apuração dos investigadores sustenta que a vereadora foi metralhada por tentar refrear o alcance dos tentáculos da sinistra costura entre quem comete transgressões e quem deveria combatê-las, entranhada no tecido social fluminense. Os três mandantes estão presos, mas o sequestro do Estado pela bandidagem é uma mancha que segue exalando mau cheiro. “O caso não deixa dúvidas de que a corrupção contamina todas as esferas”, disse a VEJA a companheira de Marielle, Monica Benicio. Bandidos, policiais e autoridades mancomunados compõem a triste realidade em muitas cidades do país, em escala que varia conforme o volume de dinheiro e de poder envolvidos, mas o caso Marielle é uma infeliz prova de que a promiscuidade é epidêmica — do tipo que só uma limpeza radical, acompanhada de expressiva mudança de mentalidade, pode extinguir. “A milícia atua em mercados que exigem a mediação do poder público, como construção civil e fornecimento de serviços básicos, e os interesses aí facilmente se confundem”, diz o especialista Daniel Hirata, da Universidade Federal Fluminense.
A explosiva combinação de dinheiro, poder e pólvora, alimentada pelo espraiamento da área sob domínio dessas quadrilhas nascidas e nutridas no universo policial, está retratada de maneira minuciosa nas 479 páginas do relatório final da PF apresentado ao ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), onde o processo foi parar porque o deputado Chiquinho Brazão (ex-União Brasil, agora sem partido) tem foro privilegiado. O calhamaço se baseia na delação premiada de Ronnie Lessa, autor dos disparos que vitimaram Marielle e que aceitou colaborar com as investigações depois de exposto por seu comparsa, Elcio Queiroz, que dirigia o carro utilizado na noite do crime. Detalhe: ambos são ex-policiais. Atando um dos vários laços espúrios que formam o enredo, Lessa contou que era velho conhecido do deputado, com quem se encontrava na casa de um amigo comum para jogar sinuca e conversar sobre a paixão por cavalos e passarinhos. A encomenda do crime foi selada no segundo semestre de 2017 e seu planejamento teve a decisiva ajuda do delegado Rivaldo Barbosa, que vetou locais onde a execução poderia sair de sua alçada. “Ele é nosso”, teria dito Domingos Brazão.
Quando Marielle foi assassinada, Chiquinho era vereador e ela lhe fazia oposição — os embates giravam principalmente em torno de grilagem e imóveis clandestinos, negócios em que, segundo a PF, os Brazão estavam imersos. À frente da Comissão de Assuntos Urbanos, o então vereador encaminhava projetos de lei para regularizar propriedades, abrigava invasores de terras em seu gabinete e nomeava pessoas de confiança para órgãos de fiscalização e controle — a proverbial raposa dentro do galinheiro.
VEJA visitou um desses empreendimentos, o Condomínio da Figueira, no alto da Muzema, uma das zonas de influência dos dois irmãos, na Zona Oeste carioca. O local é ocupado por prédios de até seis andares e, embora a prefeitura garanta haver demolido mais de 3 000 edifícios irregulares, o comércio das unidades existentes corre solto, à margem da lei. “Eu tinha planos de erguer um prédio de cinco andares junto à minha casa. Como a fiscalização aqui aumentou, estou fazendo só dois pavimentos, tudo na marra”, relata Marino, espécie de corretor oficial do local. “Mas tem vários apartamentos à venda no condomínio que posso te mostrar”, diz, exibindo duas sacolas cheias de chaves. A papelada é acertada na Associação de Moradores, com assessoria de um advogado. “Só não tem nada lá de fora, da prefeitura”, esclarece um vendedor, como se fosse natural comercializar imóveis sem escritura oficial.
A trama do assassinato de Marielle, conforme investigada pela PF, se desenrolou nesse cenário em que bandidos abocanham fatias da cidade sem ser incomodados. Assessores da vereadora contaram que Chiquinho Brazão ficou especialmente irritado com a insistência dela em destinar terrenos, alguns “na sua área”, a moradias de interesse social, e isso teria motivado a execução — explicação aparentemente pífia para ato de tamanha brutalidade, mas que se fiaria na certeza de que os autores não seriam punidos. “Se confirmada, essa denúncia comprova o quanto é fácil e barato matar uma pessoa no Rio”, enfatiza Joana Monteiro, economista da FGV-RJ, autora de um estudo que mostra que somente 3,5% dos homicídios do estado são julgados até o final.
A garantia de impunidade, neste caso, tinha nome: Rivaldo Barbosa. À frente da Delegacia de Homicídios, segundo a PF, o policial teria instituído um balcão de negócios, recebendo mesada de até 80 000 reais de chefões do jogo do bicho para obstruir investigações. Com esse currículo, ele foi nomeado para a chefia da Polícia Civil um dia antes do assassinato da vereadora. Lá instalado, recheou a equipe com gente de confiança, que fez evaporar provas valiosas para solucionar o crime. A origem das ligações perigosas entre criminosos, policiais e autoridades no Rio está no jogo do bicho, componente histórico do submundo carioca que também tem seu elo de contato com a teia do caso Marielle. Lessa afirmou à PF que um dos motivos para aceitar a “encomenda” foi a ambição de subir na hierarquia da bandidagem e alcançar o elevado patamar do amigo, e mais tarde desafeto, capitão Adriano da Nóbrega, um exemplo acabado do perverso tripé polícia-bandido-política.
Ex-oficial do Bope, o batalhão de elite da Polícia Militar, Nóbrega se tornou chefe de um bando de matadores de aluguel aglomerados em um obscuro “Escritório do Crime”. Em paralelo, soube cultivar laços políticos poderosos — chegou a ter mãe e ex-mulher nomeadas funcionárias do gabinete do hoje senador Flávio Bolsonaro, que o condecorou com a mais alta honraria do Legislativo estadual, a medalha Tiradentes. O ex-PM iniciou a carreira na marginalidade profissionalizando as execuções nas guerras entre bicheiros e, na base da violência, se fez conhecido e temido, até ser executado em fuga pela PM da Bahia, em 2020. Foi após romper com Adriano que Lessa se aproximou de Rogério de Andrade, patrono da escola de samba Mocidade Independente de Padre Miguel, que nos Carnavais costumava receber amigos em alto estilo num camarote da Sapucaí. A dupla Lessa-Andrade abriu diversas casas de bingo e caça-níqueis, com a onipresente conivência de delegados da Polícia Civil. Outro inestimável serviço prestado ao bicheiro pelas forças de combate ao crime é o de guarda-costas — há poucos dias foram presos dezoito policiais nessa função.
O vínculo da polícia com o jogo do bicho tem raízes no Estado Novo, quando o Rio ainda era capital federal, e foi visto inicialmente como inofensivo — já aí um sinal de prevaricação moral. A ameaça cresceu quando grupos de extermínio começaram a se formar dentro das delegacias, nos anos 1960, angariando apoio popular ao conceito de que “bandido bom é bandido morto”. Na década seguinte, o tráfico começou a tomar os morros e, no vácuo do Estado, policiais da ativa e da reserva criaram as milícias — grupos paramilitares de proteção que logo passaram a explorar e extorquir os moradores, institucionalizando sua presença no crime. Da extorsão e exploração foi um pulo para a política — milicianos se elegeram na base do voto de cabresto em áreas que dominavam. Quando se tornaram muito visados, adotaram a tática mais sofisticada de indicar prepostos para assegurar sua influência.
Pesquisa do Instituto Fogo Cruzado, em parceria com a Universidade Federal Fluminense, mostra que os territórios ocupados pela milícia abrangem um quinto da região metropolitana e que as organizações criminosas dominam espantosos 58% da capital, colocando 4,6 milhões de eleitores sob a tutela de quadrilhas. “Não se faz campanha no Rio sem negociar com marginais. A cidade está loteada e, dependendo da zona, o candidato não entra se não tiver o aval de quem manda ali”, diz um juiz com larga experiência na vara criminal. Uma simples volta pelo território dos irmãos Brazão, onde patrocinam associações comunitárias e hospitais, confirma a percepção. “Na época das eleições, os milicianos distribuem santinhos e pedem para votarmos em gente de sua confiança. Ninguém é louco de desrespeitar um pedido desses”, corrobora um morador da Muzema, que evidentemente prefere não se identificar.
O que fazer? Os especialistas são unânimes em apontar que qualquer tentativa de solução do problema passa pela adoção de medidas capazes de blindar as forças de segurança de interferências externas. “Não há bala de prata. É preciso construir gestões baseadas em controle, transparência e supervisão”, diz Renato Sérgio de Lima, diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Foi com a implantação de metas para a solução de crimes e afastamento de agentes corruptos que Boston e Nova York reformaram suas polícias nos anos 1990. A existência de uma autarquia federal como o FBI, com poder para intervir nos estados, foi vital para atacar a corrupção enfronhada nas delegacias dos Estados Unidos. Na Colômbia, a maior integração de órgãos do governo e o aprimoramento da relação das forças de segurança com a sociedade, junto de uma série de ações sociais, anularam a influência do maior traficante da história, Pablo Escobar, que chegou a se eleger suplente de deputado e foi morto em 1993. Seu quartel-general, Medellín, deixou de ser nome de cartel para virar vitrine de cidade bem administrada.
No Brasil de Marielle, os três mandantes do crime, depois de desembarcarem algemados em Brasília, foram despachados para diferentes presídios. De Campo Grande, onde está detido, Chiquinho Brazão apareceu em um telão na Câmara dos Deputados, em sessão onde se discute sua prisão definitiva (adiada até depois do feriado), apresentando com toda a desfaçatez sua defesa: “Tinha uma ótima relação com Marielle”. Mesmo com pontas ainda soltas, a elucidação do assassinato da vereadora é ótima notícia, um fio de esperança. Mas o mar de lama que a investigação trouxe à tona segue contaminando o Rio — e o Brasil. Até quando?
Com reportagem de Lucas Mathias
Publicado em VEJA de 29 de março de 2024, edição nº 2886