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Em Mato Grosso, o gado invade a floresta

No estado que mais registrou queimadas no país neste ano, incêndios criminosos derrubam a vegetação amazônica para dar lugar à pecuária

Por Jennifer Ann Thomas, de Colniza (MT) | fotos JONNE RORIZ
Atualizado em 4 jun 2024, 15h55 - Publicado em 30 ago 2019, 07h40
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  • O que os olhos não viam o olfato já denunciava. Por volta das 5 horas da manhã da terça-feira 27, com temperatura próxima dos 23 graus, o sereno da floresta tropical ainda se espreguiçava no horizonte da região noroeste de Mato Grosso — no caminho entre o centro do município de Colniza, a 1 000 quilômetros da capital do estado, Cuiabá, e o distrito de Guariba —, mas o cheiro de algo chamuscado não deixava dúvidas. A paisagem que logo se descortinaria seria a das queimadas fora de controle que ardem, ferem e infernizam a Amazônia.

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    (./.)

    Do começo do ano para cá, Mato Grosso registrou o maior número de focos de incêndio na Floresta Amazônica, com mais de 15 000 ocorrências. Em segundo lugar vem o Pará, com 10 000. Também destacados no noticiário sobre o assunto, que tomou conta da imprensa, Acre e Rondônia contabilizaram, respectivamente, cerca de 3 000 e 6 000 casos de queimada. O véu de fumaça que encobriu a região escureceu, e muito, a reputação internacional do Brasil — fato agravado pela troca de farpas entre os presidentes Jair Bolsonaro e Emmanuel Macron, da França.

    Nas últimas semanas, a Amazônia chamou a atenção do mundo graças a imagens aéreas, obtidas por satélites, que comprovam o que acontece em terra. Fotos da Nasa, a agência espacial americana, revelaram rastros de fumaça saindo dos estados do Amazonas, Rondônia e Mato Grosso (leia o artigo). O fogo na Floresta Amazônica, no entanto, não começou, é claro, da noite para o dia. O desmatamento ilegal, executado ao longo de meses e que teve aumento de quase 90% em junho de 2018 em comparação ao mesmo mês deste ano, é o que explica a crescente quantidade de incêndios, conforme atestam estudiosos do tema, como os cientistas ligados ao Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa).

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    ESTRAGO – Ailton dos Santos, líder comunitário: “Vemos gente que invade, e não temos o que fazer” (Jonne Roriz/VEJA)
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    “É evidente que as queimadas estão diretamente relacionadas a esse aumento brutal da destruição do bioma. O fogo representa o último estágio desse processo de devastação”, afirma a geógrafa paraense Ane Alencar, diretora do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam). Em março, Mato Grosso despontou como o estado que mais desmatou na Amazônia brasileira, com 37% do total registrado naquele mês. A tendência iria se confirmar em abril, com 31%. “A lógica do desmatamento é a seguinte: depois de cortada a floresta, a área leva um tempo para secar, e só então é que começam os incêndios descontrolados”, explica Ane. O período de seca, de agosto a setembro, é justamente quando a Amazônia costuma arder em chamas. Contudo, neste ano as queimadas se alastraram com maior intensidade. Na quinta 29, um decreto do governo “proibiu” as queimadas por sessenta dias. O estrago, porém, já estava feito — mais do que feito.

    Desde o último dia 23, eclodiram protestos — no Brasil e no resto do globo, sobretudo na Europa — exigindo proteção à maior floresta tropical do planeta. Em represália ao país, França, Irlanda e Finlândia ameaçam não assinar o acordo entre União Europeia e Mercosul, anunciado em 28 de junho e que demorou duas décadas para se concretizar. Em encontro do G7, que reuniu em solo francês as sete nações mais industrializadas do mundo, o anfitrião Macron chegou a cogitar pleitear na ONU o status de “território internacional” para a Amazônia. Era uma ameaça sem nenhuma chance de progredir — o debate em torno do assunto está ultrapassado (leia a reportagem). Apesar disso, ela só ajudou a — com o perdão do verbo — incendiar os ânimos entre o francês e Jair Bolsonaro. O ponto mais vergonhoso do embate ficou por conta do brasileiro, que, numa rede social, endossou uma insinuação desrespeitosa à primeira-dama francesa, Brigitte Macron. O presidente da França reagiu: “Espero muito rapidamente que eles (os brasileiros) tenham um presidente que se comporte à sua altura”. No fim das discussões, o G7 ofertou auxílio de 20 milhões de euros (algo em torno de 92 milhões de reais) para o controle dos incêndios amazônicos. Até a tarde da quinta-feira 29 não se sabia se o governo aceitaria a ajuda.

    Estrada margeada pela destruição provocada pelo fogo: sinais de uma terra sem lei
    RASTRO – Estrada margeada pela destruição provocada pelo fogo: sinais de uma terra sem lei (Jonne Roriz/VEJA)
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    Enquanto isso, no cenário da polêmica, a floresta, a situação continuava digna de alarme. Na terça-feira 27, a reportagem de VEJA acompanhou uma equipe do Ibama, o órgão federal de fiscalização ambiental, em uma ação contra desmatamento ilegal na região da cidade de Colniza (MT). Dois veículos participaram da operação, que envolvia a fiscalização de uma área de mais de 1 000 hectares com vegetação suprimida. Os oficiais passaram o dia verificando diferentes pontos do local, porém não encontraram os responsáveis pelas queimadas.

    “Do que observamos, há padrões que indicam claramente a abertura de campos para pecuária. A extensão das áreas, por exemplo, demonstra que se trata de fazendas”, afirmou um servidor presente na ação, que pediu para não ser identificado, temendo represálias. “Essa é a história da Amazônia. Primeiro se escolhe um local em que se pode aproveitar a extração de madeira. Depois de cortar tudo, o criminoso ainda joga fogo na floresta para transformar a área em pasto”, declarou ele. Rastros identificados pelos fiscais mostravam que as queimadas tinham ocor­rido havia menos de uma semana. “A prova de que foram intencionais é que as casas de madeira nos terrenos continuam intactas”, disse um dos integrantes do grupo do Ibama que participou da operação de fiscalização.

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    NO ATAQUE – Macron, presidente da França: troca de farpas com Jair Bolsonaro (Ludovic Marin/Pool/Reuters)
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    Os incendiários não poupam sequer as reservas. Na Terra Indígena Kawahiva do Rio Pardo foi registrado um fogaréu no último dia 24 — uma equipe da Funai evitou que se alastrasse. Ao lado dela, a Reserva Extrativista Guariba-Roosevelt também foi alvo de criminosos. Na avaliação dos nativos, as invasões teriam aumentado a partir do início do governo Bolsonaro. De acordo com o presidente da associação de moradores da Guariba-Roosevelt, o pedagogo Ailton Pereira dos Santos, o sentimento por lá é de impotência: “Vemos gente que invade para extrair madeira, atear fogo, e não temos o que fazer”.

    Para o físico Paulo Artaxo, da Universidade de São Paulo, especialista em questões ambientais e membro do IPCC (braço da ONU que estuda as mudanças climáticas), a Amazônia é estratégica para o Brasil por uma série de razões: “Ela garante o ciclo hidrológico para a agropecuária e mantém a biodiversidade. Temos de explorá-­la de forma sustentável. O pior é queimá-la, transformando-a numa grande emissora de gases do efeito estufa”. O alerta já foi mais do que reiterado. Mas o cheiro de algo chamuscado teima em envenenar o ar da floresta.

    Publicado em VEJA de 4 de setembro de 2019, edição nº 2650

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