Em xeque, o tabu da participação feminina nas instituições militares
Ofensiva da Procuradoria-Geral da República tenta derrubar as últimas barreiras à ampla presença das mulheres nas Forças Armadas e na Polícia Militar
Foi em meados de 1821, no pequeno município baiano de Cachoeira, que um jovem na faixa dos 20 anos bateu à porta do Regimento de Artilharia do Exército Brasileiro, apresentou-se como José Medeiros e colocou-se à disposição para combater as tropas portuguesas que contestavam a legitimidade de dom Pedro I, então príncipe regente. O disfarce não durou muito — durante as diversas lutas vitoriosas do Batalhão dos Periquitos, descobriu-se que o soldado, na verdade, chamava-se Maria Quitéria de Jesus. Mais tarde, ela ganharia reconhecimento oficial como a primeira militar brasileira e heroína da Independência, com direito a uma estátua na Praça da Soledade, em Salvador. O triunfo da menina órfã, que aprendeu sozinha a manusear equipamentos bélicos, foi o primeiro passo, mas a aceitação de mulheres no ambiente militar sempre andou de forma lenta, travada pela desconfiança de que não teriam a mesma condição de exercer atividades de força como os homens.
Passados dois séculos, o tabu está em xeque em razão de ofensiva empreendida pela Procuradoria-Geral da República para derrubar as últimas barreiras à ampla participação feminina nas Forças Armadas e na Polícia Militar. A iniciativa tem a assinatura da procuradora-geral da República, Elizeta Ramos, que ocupa o cargo de forma interina desde a saída de Augusto Aras, em setembro. Ela ingressou com três ações diretas de inconstitucionalidade no STF para alterar regras que limitam o ingresso e a participação ativa de mulheres nas Forças Armadas. Também entrou com processos semelhantes para derrubar a legislação restritiva de catorze estados para o ingresso e a atuação de mulheres na Polícia Militar. Em meio a essa ofensiva, o ministro Cristiano Zanin suspendeu dois concursos da PM em andamento — um no Distrito Federal e outro no Rio de Janeiro — que destinavam apenas 10% das vagas às candidaturas femininas, prática incondizente com o princípio da igualdade de gênero no serviço público.
Há entraves de todo o tipo à participação ostensiva das mulheres, especialmente nas Forças Armadas. O caso mais flagrante ocorre na Marinha, cuja legislação dá poder ao comandante para definir atividades e funções exclusivas de cada gênero. A Aeronáutica não possui regras específicas que restrinjam o acesso de mulheres, mas a regra atual permite que barreiras sejam criadas a partir de critérios físicos, emocionais e logísticos. No caso do Exército, o alvo é uma norma de 2012 que exige a regulamentação de cursos militares com vagas femininas e, com isso, cria o precedente de vetar a entrada de mulheres em outras escolas de formação.
Algumas mudanças, é verdade, começaram a ocorrer a partir da década de 80 nas Forças Armadas, embora restritas, na maioria dos casos, à participação feminina em postos auxiliares, como dentistas, médicas e enfermeiras. A Aeronáutica foi a primeira a incorporar mulheres em posições de combate, iniciando a primeira turma em 1982. É também a Força que tem hoje o maior percentual feminino — 19,7% (veja o quadro). No Exército, o ingresso foi permitido somente em 1992, e, na Marinha, seis anos depois. Até a virada do século, nenhuma mulher ocupava cargos de generalato, e até hoje não há presença feminina nos Altos-Comandos.
Em contraste, já em 2000, o Uruguai permitia mulheres entre os quadros de comandantes de todas as Forças, o que também tornou-se realidade no Paraguai em 2003. Ou seja, o atraso do Brasil é flagrante. “A Otan, por exemplo, tem metas obrigatórias para inclusão de mulheres e representantes da comunidade LGBTQIA+, coisas que ainda são tema de piada por aqui”, afirma Lucas Rezende, professor do Departamento de Ciência Política da UFMG. Desde a década passada, países como Israel e Coreia do Sul já adotam o serviço militar obrigatório para mulheres — no âmbito da Otan, o primeiro membro a implementar a medida foi a Noruega, em 2014, além de formar uma divisão exclusivamente feminina do Exército dois anos depois. Nos Estados Unidos, tanto a Marinha quanto o Comando Sul são liderados por mulheres.
A abertura no Brasil começou bem antes na Polícia Militar, embora isso não tenha representado ainda uma participação feminina maior: as mulheres são hoje menos de 12% do efetivo. A estreia ocorreu em 1955, com a formação do Corpo de Policiamento Especial Feminino em São Paulo — força pioneira na América Latina. Ao longo da década de 1980, os estados iniciaram a abertura sistemática de suas fileiras para policiais femininas, ainda que restritas a atividades auxiliares, como telefonistas, secretárias, datilógrafas e enfermeiras. Somente a partir da década de 1990 é que elas conseguiram, de fato, ocupar postos nas linhas de frente dos batalhões — no entanto, a exemplo do que ocorre com as Forças Armadas, boa parte das leis estaduais limita as vagas e funções disponibilizadas. Em geral, as regras definem um percentual fixo ou mínimo de postos de soldados e oficiais a serem oferecidos às mulheres, girando entre 5% e 15% do quadro efetivo, ou deixam essa divisão inteiramente a cabo do Executivo estadual. O resultado, em muitos casos, é uma discrepância na competitividade pelos cargos. No mais recente concurso mineiro, a relação de candidatos por vaga era de dezessete para homens e 48 para mulheres. “As normas acabam por instituir injustificado tratamento privilegiado a homens e prejuízo, preconceito e discriminação à população feminina”, diz a PGR. O julgamento deverá ser um teste de alinhamento para os ministros do STF, já que os catorze processos foram sorteados para sete relatores distintos.
A verdade é que os argumentos refratários a uma maior abertura nos quartéis são falaciosos e machistas, a começar pela ausência de “alojamentos adequados”. Mas a coisa vai piorando, com discussões sobre como fazer o compartilhamento de banheiros, descambando até ao absurdo de preocupações sobre o ciúme das esposas dos soldados. “Há uma ideia de que a mulher não foi feita para atuar na guerra. O papel que historicamente se destina às mulheres é de vítima”, afirma a historiadora Maria Cecília Adão, membro da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (Abed).
Há ainda entraves institucionais — somente a partir de 2012, devido a uma lei sancionada por Dilma Rousseff, a Marinha e o Exército passaram a permitir o ingresso de mulheres na Escola Naval e na Academia Militar das Agulhas Negras (Aman), formação necessária para subir às patentes de quatro estrelas. Naquele ano, as Forças Armadas celebraram a primeira mulher a ocupar um posto de generalato: a contra-almirante Dalva Carvalho Mendes. Em 2020, a brigadeiro médica Carla Lyrio Martins fez história como a primeira oficial-general feminina da Força Aérea Brasileira. Até hoje, nenhuma mulher chegou a general do Exército.
Uma vez dentro da corporação, as dificuldades não diminuem, pelo contrário. “Muitas mulheres nas turmas iniciais se sentem pressionadas a ter um desempenho constantemente exemplar, pois a partir delas serão pautadas as próximas turmas femininas”, conta Maria Cecília Adão. Segundo a pesquisadora, grande parte dessa pressão está relacionada à força física e à cobrança para realizar os mesmos exercícios que os homens. Quando não conseguem atingir as mesmas marcas, a diferença biológica é tomada como suposto indício de uma liderança fraca, ainda que a força bruta não seja o único — ou o melhor — parâmetro para o sucesso no comando militar.
As barreiras para mulheres no meio militar no Brasil vêm sendo removidas, mesmo que lentamente. A judicialização ora em curso no Supremo não deixa de ser uma boa oportunidade para discutir as últimas trincheiras do preconceito e da discriminação em um segmento bastante importante da vida pública do país.
Publicado em VEJA de 17 de novembro de 2023, edição nº 2868