O Carnaval tem um importante componente político. Com diferentes graus de liberdade e ousadia, marchinhas e sambas-enredos traduzem e ecoam o sentimento popular. Há espaço para reparações históricas: “Tem sangue retinto pisado / atrás do herói emoldurado / mulheres, tamoios, mulatos / eu quero um país que não está no retrato” (Mangueira, 2019). Há crítica a mazelas sociais, como a miséria e a fome: “Xepa, de lá pra cá xepei / sou na vida um mendigo / na folia eu sou rei” (Beija-Flor, 1989). E há também, claro, ironias a certas autoridades e seus privilégios: “Aí quem me dera seu eu fosse um marajá / ganhasse a vida sem precisar trabalhar /mas acontece que é só a minoria que desfruta a mordomia / nessa tal democracia” (Unidos da Tijuca, 1988). De forte apelo popular, a festa é uma sonora caixa de ressonância. Diante das câmeras da TV, o então presidente Itamar Franco, um polemista por natureza, iniciou um affair com uma modelo em pleno sambódromo. Jair Bolsonaro, por sua vez, em seus primeiros dias no Palácio do Planalto, convulsionou as redes sociais ao replicar um vídeo de dois homens praticando golden shower durante a folia. Era o prenúncio do cercadinho, onde fantasia e realidade se misturavam como se não houvesse amanhã.
Em 2009, quando surfava uma onda de alta aprovação, Lula acompanhou o desfile na Marquês de Sapucaí. Agora, deve optar pelo recolhimento. Além do clima de polarização reinante no país, o petista precisa organizar os salões do poder, onde disputas internas, embates políticos e interesses eleitoreiros podem atrapalhar a harmonia, atravessar o samba e comprometer a evolução de um governo que, apesar dos contratempos de seu principal oponente, ainda não conseguiu deslanchar no gosto popular. Nesse enredo, um personagem central é o deputado Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara. Lula e Lira não são amigos nem têm uma relação de proximidade. Na eleição de 2022, estiveram em trincheiras opostas, já que o parlamentar apoiou o fracassado projeto de reeleição de Jair Bolsonaro. Apesar disso, por pragmatismo de lado a lado, o presidente da República e o deputado estabeleceram um diálogo no ano passado, que foi marcado por uma tensão permanente, mas rendeu frutos aos dois. O governo aprovou sua pauta econômica no Congresso, e Lira conseguiu para o seu grupo político espaços generosos na máquina federal, com destaque para o Ministério do Esporte e o de Portos e Aeroportos e o comando da Caixa Econômica Federal.
“Foi bom te ver outra vez
Tá fazendo um ano
Foi no Carnaval que passou
Eu sou aquele Pierrô
Que te abraçou e te beijou, meu amor…”
No balanço de 2023, Lula cedeu mais do que queria a Lira, que não conseguiu tudo o que desejava, mas o importante é que a dupla — aos trancos e barrancos — conduziu o país a avanços, como nos casos do novo marco fiscal e da reforma tributária. Já era esperado que a tensão entre os dois continuaria em 2024. A largada, no entanto, foi pior do que se imaginava. Na abertura dos trabalhos do Legislativo, Lira teceu duras críticas ao governo e reforçou uma ofensiva deflagrada nos bastidores pela demissão do ministro de Relações Institucionais, Alexandre Padilha, responsável pela articulação política e acusado de não cumprir acordos firmados com os congressistas. “Seguiremos firmes na prática da boa política, pressuposto mais do que necessário para o exercício da própria democracia. E a boa política, como sabemos, apoia-se num pilar essencial: o respeito aos acordos firmados e o cumprimento à palavra empenhada”, declarou o presidente da Câmara. “E é por nos mantermos fiéis à boa política e ao cumprimento de todos os ajustes que firmamos que exigimos como natural contrapartida o respeito às decisões e o fiel cumprimento aos acordos firmados com o Parlamento”, acrescentou. A fala parece genérica, mas os motivos das estocadas são bem específicos.
Líder do Centrão, bloco conhecido por apoiar qualquer governo desde que devidamente compensado com cargos e verbas orçamentárias, Lira ficou descontente com a decisão do presidente Lula de vetar 5,6 bilhões de reais em emendas de comissão. Na gestão de Bolsonaro, deputados e senadores conseguiram nacos cada vez maiores do Orçamento da União. Esse processo continuou sob o governo Lula, que, no entanto, tentou colocar um freio na sangria com o veto às emendas de comissão e a imposição de regras para a liberação de verbas pelo Ministério da Saúde, que, conforme os parlamentares, ocorre de forma insatisfatória. Como parte do jogo de pressão, Lira e líderes partidários até assinaram um requerimento pedindo esclarecimentos sobre os parâmetros utilizados pela pasta para desembolsar os recursos indicados por deputados e senadores. “O Orçamento da União pertence a todos e todas e não apenas ao Executivo, porque, se assim fosse, a Constituição não determinaria a necessária participação do Legislativo em sua confecção e final aprovação”, disse Lira na sessão do Congresso.
Outro motivo de queixa é a medida provisória editada por Lula que, na prática, reverte duas decisões tomadas pelos parlamentares. Por orientação da equipe econômica, o presidente reonerou dezessete setores da economia e revogou o Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos (Perse), a fim de aumentar a arrecadação federal e ajudar nos esforços destinados a garantir o cumprimento da meta de déficit primário zero em 2024, fixada pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad. Em reação à iniciativa presidencial, diferentes frentes parlamentares pediram ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), que devolvesse a MP como forma de tornar nula a reoneração. Isso ainda não ocorreu, mas o governo está negociando um meio-termo nesse ponto específico. A polêmica no caso do Perse é menor, mas não irrelevante. Alguns parlamentares têm empresas de eventos, são potenciais beneficiários do programa e não aceitam a sua revogação. O próprio Lira tem uma empresa de vaquejada, mas, numa conversa com Haddad, garantiu nunca ter usufruído dos benefícios tributários agora combatidos pela equipe econômica, os quais chamou de “conquista” na abertura dos trabalhos do Legislativo.
“Ô abre alas
Que eu quero passar
Ô abre alas
Que eu quero passar
Eu sou da Lira
Não posso negar
Eu sou da Lira
Não posso negar…”
A queda de braço sobre o Perse se tornou ainda mais renhida depois de o próprio Haddad ter alertado líderes e empresários de que a Receita Federal está apurando a suspeita de que o programa pode ter sido usado para lavar dinheiro de atividades ilícitas. A investigação tem como base o fato de o custo do Perse, que era estimado em 4,4 bilhões de reais, ter atingido 17 bilhões de reais no ano passado. Mesmo com tantos pontos de atrito na mesa de negociação, Lira garantiu que não romperá com o governo: “Errará ainda mais quem apostar na omissão desta Casa, que tanto serve e serviu ao Brasil, em razão de uma suposta disputa política entre a Câmara e o Executivo”. Apesar do festival de críticas, o deputado não quer romper com o governo. Longe disso. Não foi mencionado em seu discurso, mas a sua principal preocupação é outra: ele quer o apoio de Lula ao nome que indicará para concorrer à presidência da Câmara em fevereiro de 2025. Quer inclusive tratar do assunto pessoalmente com o presidente ainda em fevereiro. A eleição para a sucessão na Casa é crucial para os planos políticos do deputado e determinará com qual tamanho e prestígio político ele voltará à planície. Nos corredores do Congresso, diferentes cenários são traçados.
Se o nome apadrinhado por Lira vencer, diz-se que o deputado continuará como protagonista, poderá pleitear até um cargo de ministro e preservará instrumentos poderosos para pavimentar sua candidatura ao Senado em 2026. Se o candidato dele sair derrotado, a tendência é Lira ter seu poder esvaziado, o que pode limitar seu horizonte político. Em 2023, Lula apoiou a recondução de Lira ao comando da Câmara por puro pragmatismo. Como os partidos de esquerda elegeram bancadas minoritárias, o governo e o PT não tinham condições de lançar concorrente ao posto e, por isso, preferiram não comprar briga com o favorito, o que poderia render problemas futuros, como bem ensinou a tentativa frustrada da então presidente Dilma Rousseff de impedir a eleição de Eduardo Cunha, espécie de preceptor de Lira. Escaldado por derrotas de candidatos petistas em eleições anteriores, inclusive em seu primeiro mandato, Lula costuma dizer que não cabe ao governo se envolver na disputa pela chefia da Câmara. Não é bem assim. Se perceber que o nome escolhido por Lira é o franco favorito, o presidente marchará com ele. Se houver chances reais de colocar um aliado de primeira hora no cargo, o Planalto e o PT não medirão forças para isso. O tempo joga a favor de Lula — e isso incomoda Lira.
“Ei, você aí,
Me dá um dinheiro aí
Me dá um dinheiro aí
Não vai dar?
Não vai dar não?
Você vai ver
a grande confusão…”
O deputado está atento aos sinais. Aliado histórico do PT, o PSB deixou o bloco formado por Lira na Câmara. Já a presidente petista, deputada Gleisi Hoffmann, declarou que o partido pode lançar concorrente na Casa. Nomes influentes da bancada do partido defendem o apoio a alguém de outra legenda, como o deputado Antonio Brito, líder do PSD, ou o deputado Marcos Pereira, presidente do Republicanos, que tem se aproximado de Lula. Hoje, se depender de Lira, o futuro presidente da Câmara será Elmar Nascimento, líder do União Brasil. Nascimento é um exemplo clássico das voltas que o mundo dá. Ele não virou ministro de Lula porque o chefe da Casa Civil, Rui Costa, seu adversário político na Bahia, vetou seu nome. Naquela época, Lira chegou a sugerir ao presidente da República a demissão de Costa, de quem depois se aproximou e com quem criou um canal de interlocução, escanteando o ministro Padilha. Na sessão de abertura dos trabalhos do Legislativo, Lira e Costa confraternizaram alegremente. Ignorado, Padilha tangenciou a polêmica e preferiu brincar com as palavras. Numa entrevista, disse ser ministro de Relações Institucionais, e não de relações interpessoais.
No Planalto, corre a versão de que Lira quer a demissão de Padilha porque ele é um anteparo à ministra da Saúde, Nísia Trindade. A queda de um abriria caminho para a exoneração da outra, aumentando as chances de o Centrão finalmente realizar o seu antigo sonho de controlar a pasta. Desde o início do governo, são recorrentes as queixas dos congressistas quanto à articulação política do governo. Com tantos ruídos, a tendência é que caberá a Fernando Haddad, como ocorreu em 2023, tomar a frente das negociações. O ministro assumiu sob forte desconfiança de empresários, banqueiros e congressistas, mas conseguiu reverter expectativas econômicas e políticas. Sua missão mais imediata é destravar os nós da reoneração e do Perse, defender a responsabilidade fiscal e impulsionar a atividade econômica. Tudo isso depende da boa vontade do Congresso. Boa vontade que Lira provavelmente terá caso sele um acordo com Lula. Boa vontade que, por enquanto, aparentemente está em falta na Praça dos Três Poderes. Duas reuniões do ministro com parlamentares para tratar do Perse foram agendadas e depois desmarcadas.
“Eu levo a vida pensando
Pensando só em você
E o tempo passa e eu vou me acabando
No balancê, balancê…”
No Brasil, costuma-se dizer que o ano só começa de fato após o Carnaval. Não é assim no reino da política, onde os blocos e seus líderes competem de forma permanente. Os objetivos de cada um estão devidamente traçados. Lira quer eleger seu sucessor e, depois de deixar o cargo, continuar com acesso livre ao Planalto. Lula conta com o apoio dos parlamentares para destravar projetos importantes, fortalecer o governo e aumentar suas chances de reeleição em 2026, quando duelará com a força do bolsonarismo. Já Haddad, um equilibrista em meio a tantos interesses difusos, trabalha para se consolidar como sucessor natural do presidente no PT e na esquerda. Resta saber se esses projetos pessoais, tensões e disputas resultarão na modernização do país e no seu desenvolvimento. Como é tempo de folia, “sonhar não custa nada / o meu sonho é tão real” (Mocidade, 1992).
Publicado em VEJA de 9 de fevereiro de 2024, edição nº 2879